Editado originalmente em 1988, Porta giratória reúne textos publicados por Mario Quintana no jornal Correio do Povo, de Porto Alegre. O próprio poeta chamou esses fragmentos de crônicas uma solução simples que, como costuma acontecer também com sua poesia, escamoteia a variedade que lhe está por trás. Pois o fato é que existe uma indefinição de gênero que ele explora ao alternar comentários e reminiscências com aforismos e poemas breves estes últimos publicados numa seção do jornal intitulada Caderno H (de onde foram extraídos textos para o livro homônimo, também publicado pela Globo). Quintana é de fato cronista, no sentido consagrado por uma tradição muito brasileira, na qual figuram outros poetas como Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira. Mas também é autor de epigramas que o inscrevem numa linhagem menos freqüente em nossa literatura e que muitas vezes aparecem plasmados na forma de poemas de apenas uma ou duas linhas, estocadas rápidas de uma inteligência vivaz, que destila a experiência num lampejo. Não por acaso, num dos textos aqui reunidos ele comenta: O leitor ideal para o cronista seria aquele a quem bastasse uma frase. Uma frase? Que digo? Uma palavra! O cronista escolheria a palavra do dia: ‘Árvore’, por exemplo, ou ‘Menina’. Escreveria essa palavra bem no meio da página, com espaço em branco para todos os lados, como um campo aberto aos devaneios do leitor. E, numa outra crônica, intitulada Cortar, faz profissão de fé na concisão : Cortar, cortar sempre, meu único processo. E qualquer dia destes publico mais uma nova edição de minhas obras com a indicação seguinte: NOVA EDIÇÃO, CORRETA E DIMINUÍDA. O tom galhofeiro, portanto, encerra uma poética caracterizada tanto pelo tom desinflado e pela argúcia lingüística quanto por uma disposição de examinar a realidade à volta sob novos ângulos. Como afirma a organizadora das obras de Quintana, Tania Franco Carvalhal, habituado à escrita rápida, captando a poesia diretamente do cotidiano, ele encontra nos fatos mais simples sentidos inusitados. Seu olhar, ocupado com o lado humano da realidade, extrai seu lado oculto e que não é percebido pelos demais. Como se estivesse diante da porta giratória do título, contemplando a fugaz presença das coisas, Quintana faz comentários sobre acontecimentos e personalidades públicos, reflete sobre costumes e temas sérios, inserindo neles uma nota de irreverência com a qual dá uma piscadela para o leitor. Em alguns casos, a anedota nasce de um episódio supostamente autobiográfico como em Dos males da erudição, em que o cronista conta como uma douta citação de Saint-Simon, feita num artigo sobre a morte de Getúlio Vargas, teve por único efeito fazer com que um amigo o procurasse no dia seguinte, cobrando a devolução do livro do pensador francês que havia lhe emprestado... Essa dimensão comezinha é característica da crônica, em que eventos históricos e fatos graves são vistos em sua faceta apequenada, familiar. O que não cancela, no caso de Quintana, o sentido crítico que a observação das banalidades pode propiciar como podemos ler em Passarela, fragmento de surpreendente atualidade: Um desfile de manequins, neste nosso desidratado século, lembra-nos graciosas figurilhas feitas com paus de fósforos. Em alguns momentos, Quintana adota procedimentos poéticos que desmobilizam os automatismos da língua como em Do temor de Deus, crônica que consiste apenas no título e na frase que o rebate: ... mas não é ao Diabo que deveríamos temer?. Em outros, desconstrói a paradoxal anestesia que nos acomete diante daquilo que escapa ao prosaico como em Monotonia: O que mais nos aborrece nos grandes circos é o excesso de milagres. A simplicidade gaiata das tiradas de Quintana implica um trabalho estilístico realçado pela alternância entre a narração da crônica e a concisão da máxima trânsito entre formas que é sintetizado num outro fragmento metalingüístico, Das viagens: O encanto das viagens está na própria viagem: a partida e a chegada são meras interrupções num velho sonho atávico de nomadismo. Ou ainda no poema-aforismo.