um olhar rápido para a obra de manoel de oliveira pode dar a impressão de que ele filmou, principalmente, o mundo dos abastados, a alta burguesia ou mesmo a nobreza pessoas que não conhecem o embaraço da lenta erosão do seu patrimônio. ainda assim, aqui e ali, alguns filmes vêm contradizer essa ideia : douro, faina fluvial, seu primeiro filme, e o gebo e a sombra, o último aniki-bóbó, durante muito tempo seu filme mais popular e a caixa, mais de quarenta anos depois, levam às telas os pobres e a pobreza do povo do porto e de lisboa. do mesmo modo, alguns roteiros que não foram filmados por causa da censura : os gigantes do douro e prostituição. a pobreza, na realidade, corre em filigranas ao longo de uma obra (ela mesma muito tempo concebida como arte povera) em que se descobre, para além do olhar de um grande burguês, que um personagem como ritinha, a empregada muda de vale abraão, é imbuída de um poder espiritual que falta a tantos outros personagens afortunados. oliveira me dizia, aliás, que a caixa era seu filme mais religioso e me pedia para traduzir, nas legendas, taberna por “catedral”! a alma dos ricos, título de um romance de agustina bessa-luís, interrogava-o e atormentava-o, particularmente. não se pode dizer o mesmo, no entanto, sobre a alma dos pobres. em francisca, quando camilo castelo branco e josé augusto veem os trabalhadores agrícolas, o jovem fidalgo segura o amigo pela manga do casaco e diz: “são apenas bêbados e nada mais”. ao que seu amigo romancista lhe responde : “das coisas visíveis, não se deve jamais dizer ‘nada mais’ ”. jacques parsi (traduzido por pedro maciel guimarães)