O porto é o que resta da partida. Ele está aqui, mas de modo particular. É a plataforma a partir da qual se vislumbra o outro lado, o outro mundo. Não se trata de lamentar a partida ou de relembrar o que se foi, o que se deixa. Mas de constatar o tempo e o espaço da experiência, a percepção de que a memória só se revela plenamente quando exposta ao esquecimento. Trata-se de datar a travessia, o interregno. O outro mundo está sempre perdido. O outro mundo está aqui. Ele está na ambivalência de uma segunda pessoa textual, de uma voz que diz, mas que também é convocada (Venha ver), logo de início, para algo que já não se mostra. Aquilo que procuramos nos encontra: o outro mundo vem a este como resto ou detrito de outra coisa. A escrita de o porto é inquieta, mas delicada, sempre à beira da perda, mas nunca descuidada dos acontecimentos. Os textos se completam sem a preocupação em afirmar sua autonomia ou em cumprir um programa, narrativo ou reflexivo, assumindo integralmente a ambivalência de uma escrita aventurosa que se alimenta daquilo que resta, que se nutre do embate com o acabamento. Toda luta é contra as formas. Sua dicção está mais próxima do sussurro, que dispensa a escuta nítida. Na bela reflexão sobre o tempo e a memória (a partir da epígrafe de Pascal Quignard: o que resta daquilo que passa é como o outro mundo do mundo), o tempo reaparece na antiga metáfora da água corrente, da água que se forma das gotas e que atinge um imenso (mas nunca inerte) mar. Antes cristalizadas, a expectativa e a memória se movimentam, se dissolvem. Tudo desmancha devagar para se tornar passado. O atraso é um modo do tempo. O tempo que Leda Cartum afirma ter levado para escrever este texto, a necessidade da travessia em direção ao livro, é o tempo necessário para que a gota da experiência (que dispensa a memória) se aproxime da gota da escrita (miniatura do passado, souvenirs). A vida, de fato, é um puro depois, ao qual a escrita procura dar algum empuxo, salvando do amálgama seus diferentes tempos, que se atraem como gotas d’água. O passado como tal, o outrora, aquele sem precedentes embarcou numa nave e transformou-se em tempo. Ele reaparece, na capa de o porto, na condição de um velho navio.