Arquivo Brasília traz o maior levantamento iconográfico já realizado sobre a cidade, desde antes de sua fundação, até a construção e inauguração. Entre 2003 e 2005 os artistas Lina Kim e Michael Wesely vasculharam arquivos públicos e privados num ambicioso trabalho de levantamento, catalogação e restauração de fotografias sobre a construção de Brasília, muitas delas inacessíveis ao público e com risco de desaparecimento. Os dois realizaram um trabalho monumental de pesquisa e tratamento de imagens, partindo de aproximadamente dez mil originais, até chegar a uma edição final de 1400 imagens. O resultado pode ser conhecido agora em Arquivo Brasília, livro definitivo sobre a epopeia da construção da capital federal. Além do expressivo material fotográfico, em cores e P&B, que vai das primeiras expedições de Kubitschek ao terreno, em 1956, passando pelas obras iniciais, a construção dos edifícios, até a inauguração da capital, em abril de 1960, e as décadas seguintes, a edição inclui ainda textos teóricos de críticos reconhecidos e também uma entrevista com o arquiteto Lucio Costa. Leia a seguir textos do jornalista Mario César Carvalho e do crítico Guilherme Wisnik sobre Arquivo Brasília: BRASÍLIA, NOVA DE NOVO Por Mario César Carvalho Imagens abandonadas em arquivos ou de famílias narram com um novo olhar a construção da capital brasileira Efemérides têm pouquíssima utilidade no mundo das ideias. As mais nobres talvez sejam a reinterpretação de eventos históricos à luz de novos conceitos e a descoberta de fatos que não pareceram importantes às gerações anteriores. Em Arquivo Brasília, lançado no ano em que a capital brasileira completa 50 anos, a conjugação dessas duas funções resultou numa revelação: as cerca de 1400 fotos reunidas por Lina Kim e Michael Wesely relatam uma nova história de Brasília. É uma espécie de história paralela em relação ao discurso triunfalista que costuma acompanhar as narrativas sobre a construção de Brasília. A epopeia de construir uma capital modernista no meio do nada, em menos de quatro anos, está no livro, obviamente, mas isso talvez não seja o mais importante. O que mais me agrada são as histórias do cotidiano que as fotos flagraram de maneira não intencional: as modas e modos de vida, os objetos do dia a dia, as improvisações e, principalmente, o contraste entre o modernismo dos prédios e a miséria daquele que os construíam. Dois fatos centrais explicam esse novo olhar sobre a história de Brasília. Lina e Michael são artistas plásticos, com carreiras consolidadas na Europa e nos EUA. Ambos já participaram da Bienal de São Paulo e de mostras em museus como o MoMA (Museu de Arte Moderna), de Nova York. Os dois não estão interessados em história, mas sim no "processo civilizador" que resultou na construção da nova capital, como dizem. Por não serem especialistas em nada, os dois artistas tem uma visão sem limites da história da cidade. A fonte das imagens de Lina e Michael também são poucos convencionais. São fotos que ou estavam abandonadas em arquivos públicos de Brasília ou que pertencem a moradores que faziam registros despretensiosos da cidade que nascia. Lina e Michael começaram a descobrir essa espécie de tesouro perdido em 2001. O estado de conservação das imagens era desesperador: havia riscos, amassos e bolor. Como estavam guardados em ambientes sem controle de temperatura, os slides tinham perdidos suas cores originais. Só em arquivos públicos, os dois analisaram 100 mil imagens e restauraram cerca de 4000. Michael chegou a fazer um leilão de uma foto sua na Alemanha para custear o restauro. O resultado dessa epopéia particular é o melhor livro publicado nos 50 anos de Brasília. ARQUIVO BRASÍLIA Por Guilherme Wisnik Brasília é o maior patrimônio construído da arquitetura e do urbanismo moderno. Encarnando aquilo que o grande crítico Mário Pedrosa chamou de "síntese das artes", a nova capital do Brasil é um experimento único no mundo em termos de ambição, radicalidade e escala: uma cidade-capital planejada para receber 500 mil habitantes, projetada inteiramente a partir do zero, numa região escassamente povoada do país, e essencial para a integração econômico-territorial de suas vastas regiões. Com seu Plano Piloto urbanístico traçado por Lucio Costa (1957), o "pai" da arquitetura moderna no país, e o desenho de seus edifícios públicos a cargo de Oscar Niemeyer (1956-60), o mais destacado expoente da arquitetura brasileira do século XX, Brasília representou um fato estético e político sem par na história do Brasil, e um capítulo essencial na história da modernidade ocidental. Por esse motivo a cidade foi considerada, em 1990, Patrimônio Universal pela Unesco. Ocorre que, paradoxalmente, essa rica história nunca foi bem documentada. São muito recentes as publicações mais consistentes, todas de fundo acadêmico, sobre a história e processo de construção da cidade, bem como sobre a avaliação de sua importância e legado. Mas se do ponto de vista dos textos analíticos a situação ainda é precária, do ponto de vista do levantamento visual é praticamente inexistente. Foi tal constatação, aliada ao fascínio por esse material, que levou os artistas Michael Wesely e Lina Kim a empreender tamanho trabalho de levantamento, catalogação e recuperação de um acervo imenso de fotos, que não apenas estavam inacessíveis ao público comum, mas que também corriam sérios riscos de deterioração e desaparecimento. Fazendo jus à épica empreitada de Juscelino Kubitschek, que construiu uma cidade inteira, em região despovoada, em apenas 3 anos, Kim e Wesely realizaram um trabalho monumental de pesquisa e tratamento de imagens - partindo de aproximadamente 10 mil fotos, até chegar em uma edição final de 1400 -, constituindo aquilo que é, desde já, o livro definitivo sobre a epopéia da construção de Brasília. O livro reúne um expressivo material fotográfico em preto e branco e cores, que abrange desde as primeiras expedições de Kubitschek e sua equipe ao sítio agreste do Planalto Central, em 1956, passando pelo traçado em cruz dos dois eixos principais da cidade, as obras de terrapleno iniciais, e chegando até a construção dos edifícios, a inauguração da cidade, em abril de 1960, e a sua "vida adulta", ao longo das décadas seguintes. Nesse espectro temático, o conjunto conta tanto com fotos consagradas, como as de Marcel Gautherot, Thomaz Farkas e Fontenelle, o fotógrafo oficial da cidade, quanto com um acervo jornalístico importante, como a da revista Manchete, e de fotógrafos pouco conhecidos, ou anônimos, que registraram esse importante capítulo da história. Complementado por textos teóricos de críticos reconhecidos, que embasam o alcance histórico do fato, o livro Arquivo Brasília - ele próprio - torna-se um feito histórico notável: o primeiro documento confiável e extenso, à altura da envergadura daquela epopéia. Completando 50 anos de vida, Brasília já não é mais tão nova quanto parece. Com o livro Arquivo Brasília, ela enfim ganha estatuto de documento. Caberá ao público leigo, e aos estudiosos, a partir de agora, desfrutar esse rico material, e aprofundar novas pesquisas sobre o tema. A base agora já está dada. A partir do trabalho de Kim e Wesely, podemos ficar tranqüilos porque, afinal, a sua história não perecerá.