A profissão de fé cristã contém um único nome próprio (ao lado daqueles de Jesus e da virgem Maria) que é totalmente estranho ao seu contexto teológico: o do pagão Pôncio Pilatos. Figura inusitada na liturgia cristã, e segundo Nietzsche a única dos Evangelhos que merece respeito, Pilatos é o autor de frases memoráveis, como O que é a verdade?, O que escrevi, escrevi e o fastídico Ecce homo, eis o homem!, pouco antes de entregar Jesus ao suplício. Por três meses o filósofo Giorgio Agamben se viu na urgência de interromper todas suas atividades acadêmicas para mergulhar intensamente no enigma do julgamento de Jesus Cristo, sob a figura misteriosa de Pilatos. É a figura de Pilatos, lembra, que assegura o caráter histórico da paixão de cristo: trata-se de um personagem de carne e osso talvez o único verdadeiro dos Evangelhos. Mas, Agamben prossegue, Pilatos é também algo menos e, ao mesmo tempo, muito mais que isso: um homem do qual conhecemos as hesitações, o medo, o ressentimento, o sarcasmo, as suscetibilidades, a hipocrisia... Neste breve e contundente ensaio Agamben mostra como, no encontro fugaz entre Pilatos e Jesus estava em jogo um evento enorme e inédito, para além do drama da paixão e da redenção. Neste encontro irreconciliável entre o mundo dos fatos e o mundo da verdade, provoca Agamben, como nunca em outro lugar na história do mundo, a eternidade cruzou a história em um ponto exemplar. O temporal foi atravessado pelo eterno. Desdobrando esta recíproca perfuração entre os dois mundos história e eternidade, sagrado e profano, juízo e salvação situada no âmago da religião cristã que a modernidade secularizou, Agamben nos remete aos mais candentes impasses da contemporaneidade. A pergunta chave que Pilatos e Jesus desvenda é: por que o cruzamento entre o humano e o divino, o histórico e o a-histórico, tem a forma de um processo? E que processo é esse? O que é, afinal, um processo sem juízo? E o que é uma pena (neste caso, a crucificação) que não deriva de um juízo formal?