Com apenas dois livros de contos publicados - As meninas da Torre Helsinque (1996) e Vésperas (2002) , a escritora catarinense Adriana Lunardi foi traduzida para o francês, espanhol e croata, além de ter sido editada em Portugal; recebeu críticas entusiasmadas; passou a ser apontada como uma das maiores revelações de sua geração e conquistou prêmios. E é só agora que ela lança seu primeiro romance, Corpo estranho, livro que a tira da prateleira de promessas e apostas para firmá-la como um grande talento da literatura brasileira contemporânea. O romance expõe, sobretudo, as angústias cotidianas de duas mulheres: Manu - fotógrafa de vinte e poucos anos - e Mariana - ilustradora botânica já idosa. Ambas são incapazes de ignorar o fato de que tudo se extingue. Mariana sabe que as bromélias que ela desenha durarão mais que seu corpo. Mas é pintando que ela engana as horas, aproveitando enquanto estão distraídas no jogo sujo de empurrá-la para o fim. Sua arte, que antes era um prazer, hoje é uma tentativa tola de fechar seus olhos para o desaparecer furtivo das referências que a tinham ensinado a ser quem ela é. No caso da jovem Manu, é sua diabetes tipo 1 que a obriga a encarar a certeza da morte, escondida no açucareiro, sob o papel laminado de uma barra de chocolate e mesmo na travessura de caminhar descalça pelo quintal. Sem falar nas pequenas mortes do dia-a-dia: as alegrias que se acabam, as frustrações que se impõem, as crises glicêmicas, as fugas de consciência - e se uma divindade bêbada a estiver apostando num cassino? Manu mal começou a viver e já tem as lembranças como suas melhores companhias. A efemeridade é uma regra universal que também perturba Ramiro, o médico que antes levava apenas uma manhã para criar um belo canteiro, mas que agora precisa de um dia e meio para concluir a mesma tarefa, embora a terra, a quantidade de plantas e a duração das manhãs permaneçam as mesmas. E Paulo, o marchand, lamenta ver seu torso se afeminar em redondices típicas da velhice, como nas pinturas de Lucien Freud, mas sem o digno de sua arte. Todos se apegam ao passado. A única forma de suportar a realidade é imaginá-la diferente. O ponto de interseção entre essas vidas é uma morte - a de José, irmão de Mariana, vítima de um acidente de carro 20 anos antes. Adriana Lunardi tece sem pressa a teia que unirá todos os fatos, conquistando o leitor primeiro pela beleza de sua carpintaria literária, que é de uma sensibilidade de tirar o fôlego. Só então a história se revela em sua majestade, grande e fugaz como a vida. Ao fim, vem a vontade de ler tudo de novo, talvez porque seja mesmo natural do ser humano se apegar aos prazeres passados.