O terrorismo não foi inicialmente um objeto de estudo. De certa forma, fui escolhido por ele. Morando como pesquisador na França nos anos em que este país se tornou o alvo privilegiado dos ataques jihadistas, entre 2015 e 2016, fui impelido a pensar sobre tais eventos. A reflexão foi tomando forma em textos esparsos, que me eram solicitados a medida que novos ataques se repetiam. A maior parte deles apareceu no caderno Aliás do jornal O Estado de S. Paulo, e uma primeira tentativa de maior fôlego foi publicada no quarto número da revista Peixe-elétrico. É partindo deste texto que proponho o presente ensaio, em uma versão bastante ampliada que aborda novas questões e eventos posteriores à publicação original. O terrorismo insiste em não sair de moda. Como ficará claro, não é escopo do presente ensaio enumerar fatos ou levantar dados sobre eventos específicos. Não nos interessa tampouco aprofundar a compreensão do Islã ou apresentar os conflitos geopolíticos do Oriente. Se fui levado a pensar sobre o terrorismo, foi porque reconheci em sua manifestação atual traços característicos não de uma sociedade outra, mas sim daquela em que vivemos: a sociedade do capitalismo avançado, cuja fase última foi batizada por Guy Debord como sociedade do espetáculo. Foi o caráter profundamente espetacular dos ataques terroristas que primeiro me chamou a atenção e que, como pesquisador da obra do pensador francês, vi-me na obrigação de tentar elucidar. Nesse sentido, o que busco aqui não é tanto uma compreensão do terrorismo enquanto fenômeno à parte, mas a compreensão de nossa sociedade através do terrorismo. Trata-se de um esforço de reflexão embasado na tradição da teoria crítica, que busca apreender através de um fenômeno particular e extremo características da totalidade social. Choque de civilizações? Guerra santa? O historiador Gabriel Ferreira Zacarias tem outra interpretação sobre as "novas" modalidades de terrorismo praticadas pelo Estado Islâmico na França, em 2015 e 2016, e que logo repercutiram em outros países: trata-se de um fenômeno da sociedade do espetáculo. "Foi o caráter profundamente espetacular dos ataques que primeiro me chamou a atenção nestes episódios, e que tentei elucidar", escreve o autor na introdução de No espelho do terror: jihad e espetáculo, lançamento de outubro da Editora Elefante. Zacarias aponta que as sociedades do capitalismo avançado têm muito mais a ver com os recentes ataques jihadistas do que sugere o histórico intervencionismo político, econômico e militar ocidental no Oriente Médio. "Pretendo buscar uma compreensão de nossa sociedade através do terrorismo." No espelho do terror é resultado do olhar de Zacarias sobre a série de episódios inaugurada pelo atentado ao jornal Charlie Hebdo, em Paris, e que teve prosseguimento com a invasão da casa de shows Bataclan, também na capital francesa, antes de se espalharem por outros países do mundo desenvolvido graças à ação de atiradores e veículos desgovernados. O autor reconhece nestes ataques traços característicos não de uma sociedade outra, perdida nos confins da Ásia ou da África, mas sim daquela em que vivemos: a sociedade do capitalismo avançado. Assim, o terrorismo que vemos e sofremos pode ajudar a compreender o que somos - e o que nos tornamos.