O povo de Luzia - Em busca dos primeiros americanos, escrito por dois pesquisadores brasileiros e apresentado por um jornalista especializado (Reinaldo J. Lopes), é o que seu subtítulo indica: a história da descoberta de uma história. A partir da narrativa de achados paleontológicos espetaculares feitos por brasileiros (entre os quais um dos autores) em Lagoa Santa, MG, narra de modo claro e instigante não apenas a saga dos primeiros americanos, como a saga correlata dos embates científicos envolvidos. Paralelamente, o livro, ilustrado com desenhos, diagramas, mapas e fotos, traz desde uma síntese da origem do homem e da teoria darwinista até uma descrição da fauna e da flora antigas da América, bem como discussões sobre os possíveis modos de vida de nossos ancestrais. A corrente dominante na paleontologia americana defende, ou defendia até agora, a "datação Clóvis", pela qual os primeiros humanos chegaram à América da Sibéria há cerca de 11.000 anos. O sítio de Clóvis, como os centros científicos que o defendem, fica nos Estados Unidos. O questionamento dessa datação, em conseqüência de descobertas brasileiras, implicou desde a mobilização de velhas acusações de imperialismo cultural (do lado sul-americano) e de insuficiência acadêmica (do norte-americano), até questões étnico-político-culturais. Pois a "datação Clóvis" significa que a colonização do continente se deu exclusivamente por povos asiáticos vindos por terra, enquanto as pesquisas brasileiras desenham outro quadro: 1) a ocupação americana é anterior a Clóvis; 2) ela se iniciou com povos de provável origem polinésia, vindos do Pacífico, depois desalojados pelos siberianos. Ou seja, as pesquisas brasileiras não deixam pedra sobre pedra da teoria central da paleontologia norte-americana. A ciência está hoje no centro dos debates. De um lado, é a fiadora de grandes façanhas, do Hubble à engenharia genética. De outro, é alvo de duros ataques, que unem religiosos, ambientalistas e multiculturalistas. Dessa ambigüidade não escapa a paleontologia (mas escapa o livro, ao defender de forma firme a robustez do darwinismo). Entre outros motivos, porque a história escrita pela ciência é distinta da contada pelos mitos. E hoje é politicamente incorreto contestar os mitos de outras culturas. Se os ameríndios dizem que seus povos foram criados pelos deuses nos locais em que vivem, afirmar descenderem de asiáticos que cruzaram Behring na última Era Glacial ou, talvez pior, de polinésios que cruzaram o oceano, é uma forma de desrespeito - ainda que involuntário - ao mito tribal (como no caso do "Homem de Kennewick", descrito no livro). Se não bastasse, há os próprios embates intracientíficos. Há correntes dominantes em todas as áreas científicas, que eventualmente são questionadas por novas descobertas, como aqui. Quando tal ocorre, os cientistas tendem a se comportar com mais zelo que ousadia intelectual, defendendo verbas, carreiras e instituições erguidas sobre as teorias agora questionadas. O povo de Luzia - Em busca dos primeiros americanos está, enfim, no centro de tudo isso. Nas palavras do apresentador, "abre uma janela fascinante sobre a saga dos primeiros americanos e sobre o processo científico, [...] na voz profundamente pessoal dos autores, com toques de paixão, humor e ironia".