Com prefácio de Mário de Andrade e apresentação de Haroldo de Campos, romance levou nove anos para ser escrito e foi recebido, em 1924, com incompreensão mesmo entre seus pares. Um dos mais ousados romances brasileiros de todos os tempos, Memórias sentimentais de João Miramar, publicado originalmente em 1924, com capa de Tarsila do Amaral, é a exacerbação da genialidade de Oswald de Andrade (1890-1954), um escritor que ainda hoje suscita controvérsias, pela paixão com que abraçou as causas nas quais acreditava. O filho dileto da aristocracia cafeeira paulista haveria de se transformar em sincero comunista, chegando ao final da vida sem dinheiro sequer para pagar seu tratamento de saúde. O boêmio amigo dos últimos parnasianos e decadentistas, que começou escrevendo peças em francês, se tornaria o mais radical militante da causa modernista, findando sua carreira com um painel em prosa da formação da sociedade brasileira. E isso sem falar de sua poesia e de seu teatro. Memórias sentimentais de João Miramar, assim como grande parte da obra de Oswald de Andrade, é um romance de longa maturação. Escrito e reescrito a partir de 1915, foi sendo modificado ao longo dos nove anos que separam a primeira redação da publicação, o que mostra a seriedade com que o autor encarava a sua obra, contrariando a imagem estereotipada que ainda hoje se tem dele, de polemista inconseqüente, frasista espirituoso, "palhaço da burguesia", blagueur. Recebido com incompreensão na época, mesmo entre seus pares, agradou em cheio, no entanto, aquele que se tornaria o maior divulgador das novas idéias Brasil afora, Mário de Andrade. No prefácio desta edição, Mário - com quem Oswald iria romper em 1929 - , em artigo publicado à época do lançamento, com sua costumeira sem-cerimônia, afirma que Oswald dá um passo além, "afinal Os condenados eram mais uma contemporização", enquanto as Memórias são "a mais alegre das destruições". E chama a atenção para a modernidade de Oswald (poderíamos falar hoje de sua contemporaneidade), que "sintético, marcante, abandona então todo pormenor, usando apenas o essencial expressivo". Na apresentação desse livro, Haroldo de Campos aprofunda uma observação de Antonio Candido, de que Oswald inaugura o uso da técnica cinematográfica no romance brasileiro. "A prosa experimental do Oswald dos anos 20, com sua sistemática ruptura do discursivo, com a sua estrutura fraseológica sincopada e facetada em planos díspares, que se cortam e se confrontam, se interpenetram e se desdobram, não numa seqüência linear, mas como partes móveis de um grande ideograma crítico-satírico do estado social e mental de São Paulo nas primeiras décadas do século, esta prosa participa intimamente da sintaxe analógica do cinema, pelo menos de um cinema entendido à maneira einsensteiniana". Memórias sentimentais de João Miramar é composto por 163 fragmentos, numerados e intitulados, sem necessariamente manter relação entre eles, onde, com sarcasmo, são narrados trechos da vida do protagonista, da infância aos 35 anos, onde vale menos a ação que o relato, onde prosa e poesia se confundem e se completam. Nessas memórias desfilam membros da alta aristocracia paulista, satiricamente retratados pelo espírito iconoclasta de Oswald, que nem mesmo a si poupa, já que Miramar não deixa de ser uma autocaricatura, que antecipa até mesmo as agruras financeiras futuras do autor. Mas, para além da superfície, em que se propõe a ridicularizar um mundo que desmorona, Oswald era um artista consciente de sua importância. No capítulo final, "Entrevista entrevista", retomando o tom de deboche do texto "assinado" por Machado Penumbra, "À guisa de prefácio", João Miramar é questionado por que razão não prossegue suas "interessantíssimas memórias". O protagonista alega "razões de estado", sua viuvez, e é contestado pelo interlocutor. "A crítica vai acusá-lo e a posteridade clamar porque não continuou tão rico monumento da língua e da vida brasílicas no começo esportivo do século 20". Ao que Miramar-Oswald responde, com imensa ironia, que o livro já havia sido submetido ao "sábio" dr. Pilatos, e que este lembrou-lhe Virgílio, "apenas um pouco mais nervoso no estilo".