A conhecida, mas pouco praticada, teoria do nocaute de Julio Cortázar - segundo a qual o romance vence sempre por pontos, enquanto o conto deve vencer por nocaute - cai ou bate como uma luva (de oito onças, aquela usada pelos lutadores pesos-pesados) para a literatura de Etgar Keret, uma das atrações da Flip 2014. Considerado o principal nome da literatura israelense pós-Amos Oz, Keret, que também é cineasta e autor de quadrinhos, conquista o leitor por sua rara combinação de profundidade e leveza. É impressionante como os 38 contos (alguns bem curtos, outros nem tanto) de De repente, uma batida na porta - livro que a editora Rocco, em tradução de Nancy Rozenchan, escolheu para apresentar o autor israelense ao leitor brasileiro - têm "pegada". Muitos deles atacam logo nas primeiras linhas, para definir um clima de nonsense, humor, compaixão. Assim abre o relato "Equipe": "Meu filho quer que eu a mate" (e quando o leitor descobre quem é a possível vítima, o susto ainda é maior). "Abrindo o zíper", um relato fantástico na linha de Cortázar, inicia de maneira singela, mas irresistível: "Começou com um beijo. Quase sempre começa com um beijo." "Mystique" tem, talvez, uma das aberturas mais notáveis de todo o livro: "O homem que sabia o que eu estava prestes a dizer sentou-se a meu lado no avião, e deu um sorriso idiota. Isso é o que era mais enlouquecedor nele, o fato de que não era inteligente ou sensível, e ainda assim conseguia dizer todas as coisas que eu queria dizer, três segundo antes de mim." À guisa de introdução, Etgar Keret - um contador de histórias vocacional - compõe o relato que dá título ao livro. Nele encontramos um escritor que, dentro de sua própria casa, é acossado por três visitantes indesejados e armados que exigem que ele lhes conte... uma história, que em realidade é aquela que está sendo narrada. No conto são citados dois dos mais conhecidos escritores israelenses da atualidade: "Aposto que coisas como esta nunca aconteceriam com Amós Oz ou David Grossman." De fato, no plano literário, Keret estaria mais próximo à influência e à tradição de Kafka (ainda que um Kafka que tenha lido Kurt Vonnegut e assistido aos primeiros filmes de Woody Allen). E, ao contrário de Oz, representante de uma geração anterior, tem um olhar mais desencantado, e não pacificador, em relação ao Estado de Israel e aos conflitos na região do Oriente Médio. Daí a violência na vida cotidiana que transparece em sua obra. "Simyon" retrata o clima de insegurança e falsas existências, à margem da sociedade: um atentado ceifa a vida do marido de conveniência que a protagonista havia arranjado justamente para fugir ao alistamento militar obrigatório, e de cuja existência ela nem mais se lembrava. A par da violência, os personagens estão imersos numa solidão aparentemente sem volta: em "Manhã saudável", um homem se compraz em ser confundido, às vezes perigosamente, com outras pessoas. Só para poder ter alguém com quem conversar. Ao nos dar relatos como "Terra de mentira" - talvez o mais bem idealizado entre todos da coletânea -, Keret é antes de tudo Keret, com marca e estilo próprios, sem maiores influências do passado ou da política, um escritor que, com linguagem concisa e coloquial, cativou público e crítica, foi classificado como gênio pelo The New York Times e é apontado como um dos mais extraordinários escritores de sua geração.“Conte-me uma história”, ordena um homem armado ao narrador do conto que dá título a este livro. Invasão de domicílio, um revólver carregado, ameaças – tudo isso, se pensarmos bem, parece hoje bastante trivial. Menos o pedido inesperado, com jeito de súplica infantil. Quem afinal se dá ao trabalho de roubar uma história? Aliás, histórias podem ser roubadas? E desde quando contá-las é uma questão de vida ou morte? Absurdo, sem dúvida. Como o leitor logo percebe, porém, nos contos de Etgar Keret o disparate é a norma e as fantasias mais improváveis contêm sempre um grão duro de verdade. Seus personagens dirigem de olhos fechados, imaginando em voz alta as vidas que gostariam de ter levado; levam chutes na canela desferidos por mentiras que eles mesmos inventaram; passam anos casados com alguém que encontraram apenas uma vez, no dia da cerimônia, e nunca mais. Em resumo, são contadores de histórias cujos destinos acompanham o desenrolar de suas fabulações. Celebrado como o grande renovador da literatura israelense neste início de século, Keret tornou-se um autor de renome mundial escrevendo contos que fogem às expectativas usuais em torno de uma região com tantos conflitos. Há um evidente prazer da escrita e da invenção conduzindo suas histórias, que se aproximam com frequência do fantástico e do nonsense. De maneira inesperada, porém, essas incursões pelo extraordinário revelam aspectos novos de um mundo que parecia já mapeado. O delírio torna-se uma forma de lucidez, o absurdo dá a medida do real, contar uma história pode ser a melhor maneira de evitar um tiro na cabeça.