Com a análise de duas obras de Picasso (retrato de Kahnweiller e Demoiselles d´Avignon) procuramos mostrar que o trajecto do corpo na pintura terá correspondido a um progressivo afastamento do corpo-forma onde a anatomia era pormenorizada ao milímetro. Defende-se, assim, a recusa de uma concepção do corpo que os paradigmas empiristas e cartesianos valorizaram - um corpo que designámos - numa expressão-síntese - como em estado sólido, isto é: corpo com anatomia fixa e definida, separado do mundo por espessas fronteiras-linhas, e diferenciável, ele próprio, em órgãos autónomos com funções específicas. Tentamos mostrar, nestas duas obras de Picasso, a recusa em representar esse corpo de temperaturas baixas; corpo perfeito, definitivo e minucioso; corpo de uma arte mimética que congelava o movimento em poses ou num dos seus momentos, submisso à organização mecanicista de Descartes ou à Fábrica de Vesálio ou ainda à harmonia Universal do Renascimento. Picasso, nesses quadros - e como consequência de todo um movimento de reacção em que se procurou o desequilíbrio e a desproporção - mostra, destrói, choca e decepciona pois abandona as tradicionais formas qualitativas frias que cristalizavam instantes, identidades, referenciais, e que diferenciavam ainda toda a anatomia do corpo afastando-o, assim, do mundo. Essas obras de pintura expressarão, ao invés, por via de uma energia de fusão, a procura das formas quantitativas e quentes que, com luz própria, e não iluminadas do exterior ou iluminando-o, indiferenciam momentos, referenciais, espaços, anatomias e identidades. Assiste-se, então, à tentativa de presentificar um corpo em estado gasoso, corpo de altas temperaturas, onde tudo se derrete e evapora, onde tudo é transitório, fluido, indistinto.