Há uma relativamente longa tradição de quadrinhos políticos na América Latina. Basta pensar na Mafalda de Quino. O também argentino Perramus, porém, é um caso à parte. Primeiro, por se tratar de uma narrativa longa - na verdade, uma série; segundo, por abordar situações reais (ainda que não de forma realista), como a ditadura militar dos anos 70; terceiro, por seu altíssimo nível gráfico. Mas se a série Perramus é, de certa forma, uma história da ditadura argentina, é também uma homenagem à cultura das Américas, do western aos labirintos de Borges. Assim, este Dente por dente (176 pp., tradução Michele Strzoda e André de Oliveira Lima), quarto livro do personagem "sem nome" - Perramus é a marca da capa de chuva que usa -, e o mais "aventuresco" de seus álbuns, segundo os próprios autores, envolve, entre outras coisas, uma frenética busca internacional por um dente perdido de Carlos Gardel (após uma tipicamente argentina profanação de sua tumba), envolvendo o próprio Borges (magnificamente retratado). Nas palavras de seu roteirista, Juan Saturain, "Dente por dente é, sem dúvida, a mais gratuitamente aventureira das histórias de Perramus. É também a mais longa e a menos trágica. Pode ser que abuse de certo humor dúbio, proliferem as perseguições espetaculares e haja excessiva referência a personagens históricos ou provenientes do que chamamos o mundo real. Começando por Gardel, claro, com seu glorioso e devastado sorriso. Precisamente, a reconstituição desse ícone emblemático da felicidade perdida será o objeto final da empresa. [...] Não é necessário esclarecer que nada em Perramus é ou pretende ser a verdade: Borges não só não morreu, como também ganhou o Nobel no episódio anterior e aqui se atribuem a personagens de papel e tinta chamados Frank Sinatra, Fidel Castro, García Márquez e Maria Kodama entre outros, condutas não necessariamente atribuíveis a seus homônimos de carne e osso". Mas nem por isso menos instigantes... Comentário à parte deve ser feito sobre a arte do desenhista de Perramus, Alberto Breccia. Se podem ser aqui invocadas influências do expressionismo alemão (como o caricaturista George Grosz) e de pintores contemporâneos como Francis Bacon, seu traço, marcadamente pictórico, parece ter maior relação, principalmente na própria série Perramus, com o Goya da última fase, o dos Desastres da guerra, do Saturno devorando os filhos e dos Caprichos, estes em preto e branco, como a maior parte do trabalho de Alberto Breccia. Ao lado desse traço goyesco, há enquadramentos que oscilam entre o propriamente quadrinístico, o fotográfico e o cinematográfico. O criador de Perramus é, em suma, um dos grandes artistas gráficos do século XX - e assim internacionalmente reconhecido -, cujo virtuosismo e cuja densidade estão na mais completa contramão da standardização à la mangá hoje tão em voga.