A vaca e o hipogrifo foi publicado pela primeira vez em 1977, pela editora Garatuja (Porto Alegre), e já teve diversas reedições. É um livro que dialoga de perto com o Caderno H, pois também se constitui de matérias que o poeta divulgou durante muitos anos na imprensa. São pequenas anotações, crônicas, pensamentos, aforismos, epigramas, notas memorialísticas ou a modo de um diário, além de poemas, a maioria em prosa, totalizando mais de 250 textos geralmente breves, às vezes de uma única linha, que versam sobre os assuntos os mais variados, além de retomarem as obsessões típicas do autor. Todo o encanto da poesia de Mario Quintana parece advir desse difícil cruzamento entre uma linguagem simples, cotidiana e que reproduz com verossimilhança a fala (como nos diz em "Cinema": "a grande arte sempre foi alcançada com os meios mais simples"), por um lado, e o inusitado, o surpreendente, o inesperado que consegue imaginar ou encontrar nos objetos ou situações comuns, por outro, postos em relações inesperadas. O título desse volume já indica parte desses elementos. Primeiro, a vaca, um animal conhecido e pouco prestigiado na tradição literária (afinal, outros bichos mais "nobres" foram bem mais trabalhados, como o cão, o leão ou o gato); segundo, o hipogrifo, ser puramente imaginário. Quase no fim do livro, ele próprio esclarece o leitor sobre o título, já que alguém sempre lhe pergunta o que tem uma coisa com outra em seus poemas, por aproximarem coisas tão contrastantes: "Só tem que, no meu campo de criação, aparecem por vezes hipogrifos...". Como são inumeráveis os temas trabalhados, vale chamar a atenção para alguns, explorados com maior freqüência ou porque de maior qualidade literária. Um deles é a reflexão sobre a poesia, o poeta e o leitor. Admiravelmente moderno, Quintana solicita do leitor tanto quanto dá. No texto "Pausa" ele diz que sua "atroz função não é resolver e sim propor enigmas, fazer o leitor pensar e não pensar por ele". Em "Clarividência", cabe ao leitor conseguir ler a mensagem da bola de cristal. Claro que essa mensagem não é comum, pois os poetas são "marcianos", e mais, "Os invasores", como diz o título de um texto. Cabe ao leitor, também, apropriar-se dessa nova linguagem. E o que ela tem de mais profundo - por paradoxo! - é o "silêncio", tematizado em vários fragmentos ("toda a arte é feita de silêncio - inclusive a música"). Nesse conjunto, chama ainda a atenção sua distância com respeito à poesia concreta, como se pode ler em "Tédios". Outro tema seria o das relações entre a realidade e o fantástico, aí construindo os mais diferentes jogos, que podem ir desde a natureza fantástica da mais simples realidade (como a de sua imaginação infantil, no texto "Exercícios") até à negativa de que qualquer coisa de fantástico possa existir, como se lê em "Conto amarelo". Um terceiro, presente num conjunto expressivo de textos, é o das relações entre o passado e o presente, entre as recordações das experiências e as situações similares no presente, que abrem para grandes rupturas ou indicam processos de decadência. Em "Ah, as viagens", é a catástrofe do tempo presente, no qual o poeta viaja sozinho, e não com o pai e com a alegre agitação da véspera. Nesse conjunto, não falta o humor negro, tão característico de sua obra, geralmente associado ao processo da decrepitude e da morte, como em "Verbetes", onde a infância é a vida em tecnicolor, e a velhice, em preto-e-branco, ou "Reflexos, reflexões", em que "a idade é o menor sintoma da velhice". Por trás de tantas brincadeiras delicadas e um fino humor, não há ilusões, e certamente não por acaso o livro se encerra com o poema "Ovo", soturno na imaginação de um futuro no qual não há mais homens na terra, somente uma galinha, cujo ovo é comido pelo anjo, que, nauseado, "cai duro, no chão!". A presente reedição do livro, pela Editora Globo, na ‘‘Coleção Mario Quintana’’ (plano editorial de Tania Franco Carvalhal, que prevê a publicação de 18 títulos do poeta, no rol das comemorações do centenário de seu nascimento, em 2006), inclui apresentação da organizadora, intitulada "O imaginário do poeta", ‘‘Bibliografia do autor’’ (obra editada no Brasil e no exterior, textos em antologias nacionais e estrangeiras, obras do autor traduzidas e obras traduzidas pelo autor), ‘‘Bibliografia selecionada’’ e extensa ‘‘Cronologia’’ de sua vida e obra.