A organização deste volume surgiu a partir do ideal e da prática de uma grande neonatologista, Dra. Josenilda Caldeira Brant (in memorian), que com muita paixão e profissionalismo ficou reconhecida no meio médico não só pela sua dedicação aos seus pacientes, mas também pela sua inserção em causas mais amplas. Assim, quando iniciou uma consultoria ao Ministério da Saúde na área da saúde da criança, estabeleceu o carnê da criança que demonstra seu grande interesse pelo desenvolvimento infantil, iniciando então uma interlocução com os pediatras sobre este tema tão importante embora nem sempre privilegiado, haja visto as preocupações mais urgentes com mortalidade infantil, campanhas de vacinação, entre outras. Em 2001, a Dra. Josenilda teve acesso a uma pesquisa conduzida na França, o "pré-aut", que tentava identificar indicadores clínicos de risco para o autismo. Entusiasmada com a idéia de fazer também no Brasil algo que pudesse seguir na direção de uma atenção mais específica aos problemas do desenvolvimento, contactou então alguns profissionais que no Brasil se dedicavam à primeira infância, com o intuito de juntos ajudarem na reformulação do carnê da criança e nele incluir os aspectos psíquicos do desenvolvimento infantil. Assim surge um projeto de pesquisa inteiramente elaborado por psicanalistas brasileiros, que pretende validar Indicadores Clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil, utilizáveis na prática pediátrica. A Dra. Josenilda, já com sua formação em psicanálise em curso há vários anos, aspirava uma interlocução entre pediatras e psicanalistas. Como nós, da área "Psi", sabia que muitos dos transtornos no desenvolvimento eram tardiamente identificados, o que repercutia negativamente no prognóstico das crianças com problemas mais graves, como por exemplo nos casos de autismo. Como pediatra, conhecia de perto a angústia dos médicos que diante de uma criança que não parece ir muito bem, não sabem entretanto como sinalizar aos pais ou mesmo reconhecer a preponderância dos aspectos psíquicos envolvidos. Assim, ao coordenar nosso grupo de pesquisa ( intitulado Grupo Nacional de Pesquisa - GNP), até sua morte, em 2003, Dra. Josenilda não esqueceu um só minuto de nos lembrar que nossa pesquisa não se dirigia a psicanalistas mas sim a profissionais de saúde de uma maneira mais ampla, para que estes pudessem, no futuro, ao menos identificar crianças em sofrimento psíquico e diante disto saber se posicionar adequadamente. Logo que nosso projeto começou a tomar corpo ela se interessou em transformá-lo em livro. Idealizava que todos os membros do GNP pudessem ali colocar sua contribuição. Como faleceu antes de viabilizar este projeto, encarreguei-me pessoalmente de não deixá-lo esquecido. Suponho que ela teria conseguido de fato cumprir seu ideal: o de que ao menos uma grande parte ali escrevesse. Nas minhas mãos pude fazer uma aproximação do teria sido sua vontade, com a certeza de que um primeiro passo foi dado...Muitos outros ainda farão parte desta longa caminhada. Pensei num título que evocasse cantigas ou histórias infantis, como é a marca desta coleção, De Calças Curtas, e logo me veio a mente a cantiga "O cravo e a rosa". A estrofe "O cravo brigou com a rosa, o cravo saiu ferido e a rosa despedaçada" me faz pensar na distância que a psicanálise abriu em relação ao campo da medicina e como após mais de um século não aprendemos ainda a partilhar nossas diferenças. Lamento a cada dia, quando recebo no consultório crianças que atendidas por um neuropediatra que prescreve: "atendimento psicanalítico aí não é indicado", ou quando nos deparamos com bebês tão pequenos sendo exaustivamente investigados do ponto de vista somático sem que o psíquico seja sequer evocado, a não ser, é claro, quando todos os recursos médicos já se esgotaram. Mas aí... muitas vezes a rosa já está despedaçada. Por isso sinto não termos tido a colaboração de muitos pediatras para este volume, como era meu ideal, porém acredito que isto se deve a este momento histórico no qual, só agora podemos inaugurar um diálogo. Imagino um segundo volume, talvez quando pudermos de fato dialogar e, aí sim, teremos muito mais a aprender com a clínica pediátrica. Portanto, este volume, que inicialmente tinha a intenção de trazer textos de pediatras e psicanalistas, se revelou, ao final, muito mais uma contribuição de psicanalistas investidos no diálogo com pediatras, do que o vice-versa. Por isso considerei mais justo darmos ao volume o subtítulo "A psicanálise e a pediatria: um diálogo possível?" Desta forma melhor caracterizamos este momento em que a psicanálise expressa seu desejo de fomentar um diálogo com o campo da medicina, diálogo que tem sido, desde Freud, polêmico, para não dizer problemático, mas que é ao mesmo tempo fundamental, sobretudo no tratamento de crianças pequenas. Para iniciarmos tal diálogo consideramos importante resgatar o início da história da psicanálise no Brasil, quando ela apenas se anunciava e suscitava um misto de interesse e desconfiança. Fomos buscar nos arquivos da Sociedade Brasileira de Pediatria textos da década de 30 que trazem os pontos de vista de pediatras renomados abordando a influência e a importância da psicanálise em suas práticas. Estes médicos reuniam-se no início dos anos 30, na Bahia, para estudar com o famoso psiquiatra e antropólogo Arthur Ramos os textos de S. Freud. A história desse grupo encontra-se relatada no volume 60 Anos de Psicanálise - Dos precursores às perspectivas no final do século (Denise de O. Lima, org.), desta editora. Assim na Primeira Parte, trataremos da história de um encontro. O primeiro texto é do Dr. Lages Netto, que em comunicação apresentada à Sociedade de Medicina Legal, Criminologia e Psiquiatria da Bahia, convoca seus colegas pediatras à reflexão a respeito do lugar do pediatra em relação à criança e à família. Ele nos lembra que o ideal da medicina sempre foi e continuará sendo a prevenção das alterações mórbidas e que a tarefa primordial do médico deve ser a da profilaxia dos distúrbios de toda ordem por meio de conselhos médicos, higiênicos e dietéticos. Para tanto, o pediatra deveria reconhecer e utilizar os conhecimentos relacionados à contribuição de Freud, que enfatizou a importância da história e dos acontecimentos da vida da criança na formação do seu caráter e conservação de sua saúde. O segundo texto, ainda da década de 30, do Dr. Hosannah de Oliveira, ressalta a importância dos aspectos psíquicos no desenvolvimento corporal destacando as conseqüências desastrosas da situação de hospitalismo na infância. Ele salienta ainda a psicogênese de sintomas corporais e a ação decisiva da educação familiar dando grande destaque aos transtornos alimentares. Seguindo a perspectiva histórica, Raquel Diaz Degenszajn nos traz uma preciosa avaliação da formação médica na atualidade. Ela nos apresenta um excelente relato do trabalho desenvolvido com médicos no período de sua formação, a respeito da saúde mental da criança. Neste texto a autora destaca o desejo de mudança do médico, os paradigmas no campo da saúde e na prática médica e os efeitos de uma posição "analítica" nesta formação. Leda Fisher Bernardino, numa palestra transcrita especialmente para este volume, desenvolve a questão da constituição psíquica do infante, enfocando as funções materna e paterna e o efeito do desempenho de tais funções no desenvolvimento global da criança. Já Lea Sales e Marcos Nogueira Souza discutem a importância da implantação de um serviço psicológico em um ambulatório materno-infantil, e sua articulação com as diversas disciplinas (pediatria, T.O, fonoaudiologia, fisioterapia, etc.) e nos trazem os fragmentos de um caso clínico em que o sofrimento psíquico de um bebê pôde encontrar uma mudança de foco onde os significados médicos passam a ser relidos a partir de sua história e sua interação com o Outro materno. Já a segunda parte, intitulada Intervenção Precoce: o Bebê e seu sofrimento, inicia com um texto de minha autoria, onde faço um percurso também histórico da intervenção psicológica com bebês e crianças pequenas, destacando tanto as práticas institucionais como clínicas nessa fase do desenvolvimento, articulando a questão da psicanálise e da prevenção. Sônia Mota e Eloísa Troian Zen, num artigo originalmente escrito para o Manual de Cuidados com o Recém-nascido, para o Ministério da Saúde, abordam com muita sutileza as vicissitudes da função materna, evocando todo o tempo situações típicas em que esta função pode apresentar-se em dificuldade e destacando o papel do pediatra nas chamadas intervenções precoces (IP). Aprofundando esta dimensão da formação da subjetividade, Perla Klautau desenvolve um trabalho cuidadoso em torno das contribuições de Winnicott e Lacan, abordando pontos de encontro e divergências destes dois teóricos que tanto contribuíram para a compreensão do psiquismo do infante. A seguir Sílvia Molina escreve sobre as funções parentais e seu fracasso na formação do laço social. Através de um caso clínico a autora ilustra a fragilidade da relação da criança ao Outro primordial, com incidências nas suas aquisições em relação ao corpo, à socialização e à linguagem. Ana Marta Meira apresenta uma excelente contribuição acerca da sociedade atual e suas incidências na relação pais-bebês. Um texto que suscita muitas questões no campo da intervenção precoce acerca do lugar do profissional que se ocupa de bebês e crianças pequenas. Por fim temos um artigo de Marluce-Gille, que nos aponta para uma rica possibilidade de intervenção precoce com o modelo institucional do tipo "Maison Verte" criado por Françoise Dolto, um modelo que ainda não dispomos no Brasil, mas que certamente traria um impacto enorme do ponto de vista da assistência materno-infantil. Espero que possamos, no Brasil, também dar nossa contribuição nesta direção.