Muitas têm sido as dificuldades e entraves à implantação do ideal de igualdade e liberdade sob cujos auspícios se construiu a versão moderna de nossa cultura. Embora menos trombeteada na cena pública do que as ameaças recorrentes do autoritarismo político e da exclusão social, dói à consciência moderna, com igual vigor, a consciência da resistência da diferença entre os gêneros. E mais do que a consciência da resistência pública, cidadã - que sempre se pode atribuir a uma complexa causalidade exterior -, dói a consciência da resistência privada, insidiosamente renitente no interior mesmo dos casais, das unidades sociais em que o império do amor e da mútua dedicação poderia fazer levar a uma mais imediata concretização da almejada mutualidade. A percepção comum do desafio não pode conduzir porém, automaticamente, à compreensão de sua lógica. Pode conduzir no máximo - como sempre conduz - à expressão dos bons votos militantes e ao reconhecimento ralo da mídia. A pesquisa de Maria Luiza Heilborn dirigiu-se a esse ponto: como descrever e interpretar sistematicamente um fenômeno tão geral e banalizado quanto crítico e elusivo. Dedicou-se assim à observação antropológica da convivência conjugal de personagens múltiplos das camadas médias cariocas no começo dos anos 1990 - a uma distância crítica, reveladora, da grande transformação comportamental dos anos 1960. E o fez através de uma engenhosa estratégia: colocou em comparação sistemática as expectativas e soluções conjugais de heterossexuais e de homossexuais masculinos e femininos. Criava assim as condições ideais para a revelação dos mecanismos sutis, inconscientes no mais das vezes, pelos quais a assimetria dos gêneros se impunha a sujeitos sociais comprometidos - no entanto - com a modernidade e com seu ideal de igualdade. A riqueza de sua contribuição pode ser atribuída assim à articulação de três grandes eixos. O primeiro é o de se concentrar nas camadas médias e, dentro delas, nos seus segmentos cultivados, metropolitanos, do tipo "Zona Sul" carioca, típicos da modernização societária característica da sociedade brasileira da segunda metade do século XX. O segundo, o de se concentrar nos relatos minuciosos, sensíveis, apaixonantes, dos sujeitos expostos à experiência da conjugalidade, como desejo, como desafio, como eventual desengano. E, finalmente, o de ter privilegiado a triangulação das alternativas possíveis em função das orientações sexuais. Cada um desses eixos impôs certas propriedades críticas ao trabalho resultante. (...) Nem todos os leitores saberão - agora que o círculo dos iniciados pode se ampliar indefinidamente - que este trabalho emergiu no contexto da rica experiência da Antropologia Urbana do Museu Nacional, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, desencadeada pela energia e engenho pioneiros de Gilberto Velho. O trabalho intelectual, mesmo o mais criativo, depende do húmus coletivo onde coalescem suas hipóteses, de que emergem suas balizas críticas, em que se desenham seus horizontes de influência. A pesquisa de Maria Luiza Heilborn dialoga com uma série de outros trabalhos etnográficos, mais ou menos seus contemporâneos, articulados nesse contexto expressivo, e os sutiliza, por assim dizer, com sua contribuição específica e original. A mais alta exigência de uma obra, em nossa tradição científica, não é a de apresentar as soluções para as dúvidas e dilemas que nos perseguem na interpretação do mundo social humano; é sim a de fornecer instrumentos para poder pensar à frente, mais adiante, com uma renovada inquietação. Nada mais oportuno do que fazê-lo sobre identidade, gênero e igualdade.