[...] O caso, de tão atual, palpável: o cego no meio do tiroteio. Perdido? Nem um tanto, cauto, sim, precavido, munido de mais saídas que o comum. Quem o guiava, aos disparos, correu-se, fugindo em topo à balaria, estrondos que eram muitos, sibilados e sequentes. O cego, baixado ao solo, punha atenção aos áudios. Os tiros iam e vinham por sobre. Tiro, o estampido, a bala tinindo, invisualmente, porém tateável. A meio metro ou mais ou menos da sensação asfáltica o cego rastejou. Chegou a um ‘aqui’ com mais silêncios. O cego no meio do tiroteio salvado daquela morte para outra; o guia, perdido; as balas, perdidas. (Cego no meio do tiroteio) [...] Poderia ter voltado mais cedo pra casa, sim, mas o bar, depois o mar me tomaram completamente: um lanche demorado e três cervejas bebidas a contragosto, pois não gosto de beber quando estou sozinho. Ao final da terceira garrafa, sentia aquela falsa leveza da existência a subir pela nuca fazendo tudo se passar na câmera mais lenta: o menor de todos os acontecimentos ganha proporções de épico. Uma mosca paira na beirada vertical da mesa e vai subindo lentamente até sua pequena cabeça alcançar a superfície horizontal. Os olhos dela de mil ângulos distintos investigam a área e identificam milhares de migalhas caídas sabe-se lá de quantos pães. Ela sabe, as migalhas são suas por um direito inalienável das moscas, apesar da violência desproporcional dos guardanapos. Esta mosca, aqui, em particular, lembra qualquer coisa composta de algum desespero; é madrugada e ela ainda se esfalfa enquanto outras dormem, a essas horas, o terceiro sono. Sinto uma emoçãozinha boba subindo pelo esôfago. Fico a menos de um passo, um passinho só, de transbordar de compaixão por essas criaturas errantes... (Faca na garganta)