O pior da Lei Complementar no 893, de 9 de março de 2001, não está nas inconstitucionalidades e atecnias que contém, mas no conjunto de valores políticos e ideológicos que ressuscita: o totalitarismo fascista. Ainda que dissimuladamente, a Lei Disciplinar da Polícia Militar (LDPMESP), explicita o organicismo, o irracionalismo e o antiuniversalismo que marcam o totalitarismo fascista. O Decreto no 13.657, de 9 de novembro de 1943 (Regulamento Disciplinar da Polícia Militar do Estado), revogado pela LDPMESP, também era expressão do pensamento totalitarista, porém, na vertente da "ideologia comunista", eis que expressava, em oposição à Lei Complementar no 893, de 9 de março de 2001, ainda que em baixa medida, apego a valores humanistas, racionalistas e universalistas. Chega a ser incompreensível que, em plena vigência do Estado democrático de direito, editem-se normas a teor da Lei Complementar no 893, de 9 de março de 2001, sem a necessária repulsa das pessoas e instituições. Tal fenômeno somente se compreende sob o império de duas causas: medo e desprezo. Medo da espiral da violência que justifica a edição de toda sorte de normas que, ainda que atropelando princípios e valores democráticos, possam funcionar como lenimento para a insegurança reinante. Desprezo pelas coisas do âmbito militar, já que as instituições e os servidores militares são vistos como estranhos, como esdruxularias passíveis de regência por normas espúrias. Os policiais militares do Estado de São Paulo, sobretudo os praças, sob a regência da Lei Complementar no 893, de 9 de março de 2001, vêm sofrendo verdadeiro "genocídio funcional de ordem disciplinar". Desapareceram do âmbito disciplinar da polícia militar do Estado de São Paulo as noções de reeducação funcional e "dosimetria" das penas disciplinares, de sorte que, com fundamento em normas de conteúdo indeterminado, transgressões não especificadas, imputações em sede de responsabilidade objetiva, e decisões fundadas na "discricionariedade administrativa", toda sorte de sanções são aplicadas, mormente as demissórias, sem nenhuma técnica, ciência ou Justiça. Sob a vigência do Decreto no 13.657, de 9 de novembro de 1943, (Regulamento Disciplinar da Polícia Militar do Estado), dada a matriz humanística desta norma, o policial militar somente chegava às raias da perda da função após o esgotamento das possibilidades de reeducação funcional e, com estrita observância do critério dosimétrico. Hodiernamente, sob os influxos fascistas da Lei Complementar no 893, de 9 de março de 2001, um sem número de policiais militares, sobretudo praças, perdem a função na primeira falta grave cometida, sem qualquer possibilidade de adequação aos valores e princípios da corporação. O fenômeno aqui considerado coincide com a concentração do poder disciplinar nas mãos da corregedoria da polícia militar e com o aniquilamento da influência dos comandos de Unidades, nas decisões disciplinares finais de cunho demissório. Assim, na Corregedoria da polícia militar, faz-se "ouvidos moucos" aos pareceres dos conselhos de disciplina e presidências de PADs e, bem assim, às decisões das autoridades convocantes, de sorte que o entendimento distante dos fatos, meramente conceitual e documental, lançado com desprezo à pessoa do acusado e aos reflexos da falta no ambiente onde praticada, acaba prevalecendo, tudo em detrimento dos elementos de imediatidade que melhor indicam a solução disciplinar justa. O anti-humanismo que presidiu à formulação da Lei Complementar no 893, de 9 de março de 2001, afina-se com a causa de todos os males da Polícia Militar: o desprezo pelo "homem policial militar". Governos ineptos nas coisas da segurança pública vêm se sucedendo no Estado de São Paulo, deixando de priorizar o elemento de base para a reforma da segurança do Estado: o homem. Governos há que investem em viaturas, outros há que investem em equipamentos, outros ainda em novas culturas e doutrinas operacionais as mais esdrúxulas e estapafúrdias - todos sucumbem, já que tratam como elemento secundário o que é substancial: o agente da segurança pública em sua dimensão humana. O policial militar é mal remunerado, trabalha em condições precárias, expõe-se a condições extremas e estressantes, não goza do justo reconhecimento pelos sacrifícios que seu mister exige, e ainda se vê submetido à disciplina fascista instituída pela Lei Complementar no 893, de 9 de março de 2001. Tais fatores conjugados resultam na espiral patogênica que acomete os policiais militares, com exceção daqueles que, mais pela política do que pelo mérito, cumprem a carreira em gabinetes no exercício de funções privilegiadas. Nunca se viu na Polícia Militar, ainda que proporcionalmente, níveis tão elevados de suicídios, doenças mentais e psiquiátricas, afastamentos médicos, divórcios e separações, dependência de álcool e drogas e desvios de toda ordem. Na base deste fenômeno está a desconsideração pelo homem e o culto à instituição (Estado, polícia militar), esta última posta como entidade absolutamente superior ao homem individual (policial militar) que a integra e expressa sua vontade. A Lei Complementar no 893, de 9 de março de 2001, é instrumento posto a serviço do anti-humanismo e da tendência a "coisificar" o homem policial militar. A reação contra a Lei Complementar no 893, de 9 de março de 2001, deve se dar no plano político. Quer na composição do parlamento do Estado, quer no Executivo estadual, quer nas associações representativas de praças e oficiais, o voto do policial militar deve ser dado no sentido da renovação. Os quadros atuais (políticos e associativos) estão saturados e comprometidos, ao menos por acomodação, com a ordem que legitimou a edição da malsinada Lei Disciplinar da Polícia Militar. Enquanto a brisa límpida e benfazeja da renovação política e associativa necessárias não se manifestar, impõe-se suportar com as armas da ciência do direito as atrocidades jurídico-disciplinares legitimadas pela Lei Complementar no 893, de 9 de março de 2001. A presente obra é contribuição dada para a retomada do humanismo, do racionalismo e do universalismo no campo disciplinar da Polícia Militar do Estado de São Paulo. Nesta linha, o trabalho enfrentou as inconstitucionalidades e atecnias da norma em apreço, estabelecendo um paralelo com o passado (Decreto no 13.657, de 9 de novembro de 1943, o RDPM derrogado), e o futuro, personificado na Lei Disciplinar Militar de Minas Gerais (Código de Ética e Disciplina dos Militares do Estado de Minas Gerais - CEDM - Lei no 14.310 de 19 de junho de 2002), a mais avançada em elementos juridico-democráticos de cunho disciplinar-militar do país. As inconstitucionalidades e atecnias foram comentadas na ordem em que, na seqüência de artigos, aparecem na Lei Complementar no 893, de 9 de março de 2001. No apêndice, para facilitar ao estudioso do tema a visão do todo, transcreveu-se o teor da Lei comentada e de suas alterações. Espera-se que o presente trabalho seja um contributo ao esforço de derrogação da Lei Complementar no 893, de 9 de março de 2001, a mais infamante norma disciplinar editada em nosso país para regência de policiais militares. Os policiais militares do Estado de São Paulo, política e associativamente unidos, a exemplo dos militares de Minas Gerais, podem destronar a Lei Complementar no 893, de 9 de março de 2001 para, sobre sua ruína, fazer vigorar Lei Disciplinar afinada com os valores do Estado democrático de direito.