Reportagens como as que são reunidas aqui não encaixam decerto na formulação do jornalismo objectivo, imparcial, desapaixonado. São histórias contadas de um ponto de vista - o meu. Escolhi contá-las, investigá-las, vivê-las e filtrá-las. Imprimir-lhes a minha ficção. Contá-las assim, desta forma, e não das trezentas mil e quinhentas outras que existiriam. [...] Não são, necessariamente, "a verdade" sobre as situações que descrevem. O que é que se passou de facto na noite em que Licínio Saraiva morreu depois de um assalto a uma loja de electrodomésticos no Carregado? A sua morte foi um crime ou um acidente? O que é que aconteceu a Beanito, o menino guineense surdo-mudo de dez anos que desapareceu do hospital Egas Moniz e que no mesmo dia foi colhido mortalmente por um comboio a muitos quilómetros de distância? Está bem contada, é justa e fiel, a história de Evaristo, o boxeur cabo-verdiano que veio para Portugal para ser campeão e esgotado o seu mito, depois de não conseguir dinheiro para mais uma dose de heroína, se lançou para baixo de um comboio suburbano? Consegui aproximar-me do retrato da geração dos anos noventa ou pelo menos questionar a ideia de espírito geracional? Soube interrogar o sentimento da solidão? Logrei mostrar a desolação essencial da pobreza? Será que vi o que havia para ver, o que devia ver, em Bagdad e Israel? Consegui olhar para o Museu do Holocausto? Senti o que havia para sentir? Fiz as perguntas certas? Escolhi o melhor caminho?» Após a formulação de todas estas questões, Fernanda Câncio conclui: «Perceber que se não percebe, que quanto mais se pensa, se interroga e se investiga e se procura chegar a isso a que damos o nome de verdade ou de essência das coisas (ou das pessoas) mais e melhor se percebe que nunca perceberemos.