Há mais de vinte anos, tive a oportunidade de estudar com certa atenção uma enorme monografia taxonômica escrita por um venerável zoólogo da velha guarda. Era um trabalho de mais de mil páginas que focalizava, em escala continental, toda uma grande família de insetos, e o autor era daqueles especialistas que dominam exemplarmente sua área. Em certo ponto, ele se permitia uma pequena digressão filosófica sobre a natureza do seu trabalho. Quando as espécies possuíam aquelas peculiaridades definitivas que não deixavam margem a dúvidas, seu posicionamento taxonômico estava naturalmente resolvido. Entretanto, sempre apareciam espécies recalcitrantes, desafiadoras, problemáticas. O bom homem tinha a solução: colocava-as onde pareciam mais felizes.Dessa perspectiva, o grande problema da sistemática seria a felicidade das espécies. Talvez possamos estender a noção e falar também na felicidade de populações, gêneros, famílias e assim por diante. Resta saber o que isso significa.As últimas quatro décadas testemunharam um intenso debate acerca dos fundamentos teóricos e metodológicos da sistemática (ou taxonomia), tão intenso como jamais ocorrera antes. A taxonomia tradicional praticamente não se manifestou nessa longa discussão, permanecendo mais ou menos tão recessiva quanto sempre foi. Três outros grupos, porém, pronunciaram-se com vigor, a taxonomia numérica, a taxonomia evolutiva e a sistemática filogenética. Além da taxonomia tradicional, também a numérica e a evolutiva, depois de alcançarem algum prestígio, perderam terreno. Não conseguiram sustentar o debate. A sistemática filogenética, por outro lado, não cessou de crescer vertiginosamente nos últimos vinte e poucos anos. Parece seguro afirmar que, doravante, a sistemática será filogenética.Os problemas das escolas que se opunham à sistemática filogenética eram de teoria e de método. Quando falo em teoria, refiro-me a uma teoria biológica que explique a natureza da diversidade do mundo vivo, que é o universo próprio da sistemática, e não a uma teoria filosófica como o essencialismo, que só entravou o desenvolvimento da ciência. A evolução é a única teoria científica da diversidade biológica. Quando falo em método, refiro-me a uma metodologia ao mesmo tempo sólida e consistente com a teoria da evolução. Só a sistemática filogenética possui esses requisitos absolutamente indispensáveis para uma sistemática moderna que possa servir a toda a biologia.A taxonomia tradicional não tem teoria nem método. A taxonomia numérica não tem teoria biológica: tem uma metodologia, mas é puramente um conjunto de métodos matemáticos aplicados aos organismos. A taxonomia evolutiva tem uma teoria muito confusa e imprecisa e nunca foi capaz de desenvolver qualquer metodologia. A sistemática filogenética é a única taxonomia exclusiva e eminentemente biológica que jamais existiu, isto é, a única que tem uma teoria biológica da diversidade e um método compatível com a teoria.As taxonomias tradicional e evolutiva constituem o que podemos chamar de taxonomia implícita. Jamais dizem como fazem o que fazem. A taxonomia tradicional só comporta um tipo de treinamento, a familiarização sensorial, neural, com os espécimes. Esse conhecimento é indispensável aos taxonomistas de qualquer tendência, mas é insuficiente para a tomada de decisões, para a solução de problemas de relacionamento formulados pela teoria sistemática.. Em vez da interpretação teórica dos caracteres, há preferência por caracteres mais relevantes. A taxonomia evolutiva em pouco ultrapassa a tradicional. O jargão diferente, apesar das boas intenções, freqüentemente não passa de cosmético. Os tradicionais e os evolutivos usam diferentes linguagens, mas são todos, fundamentalmente, impressionistas. Em suma, a taxonomia implícita não sabe onde as espécies se sentem mais felizes e não sabem como chegar lá.A taxonomia numérica, como a tradicional, prega abertamente a abstinência teórica, como se fosse possível. Insiste obstinadamente em desvincular a taxonomia de toda consideração de ordem evolutiva ou filogenética. Os numéricos e os tradicionais não têm qualquer objeção teórica à teoria da evolução. São simplesmente alérgicos à evolução, não gostam de ser vistos na presença dela em público. Pretendem fundar a taxonomia na simples constatação da similaridade manifesta. Só que a taxonomia numérica, ao contrário da tradicional, tem um método. Os matemáticos construíram um complexo campo de investigação chamado de análise multidimensional (ou multivariada). Uma parte dele é a análise de agrupamento. Uma parte desta, aplicada os organismos, recebeu o nome de taxonomia numérica.. Quer dizer, a taxonomia numérica é a simples transferência para a biologia de um pequeno número de técnicas matemáticas que têm larga aplicação fora da biologia e que serve para ajuntar coisas comparáveis de qualquer tipo, como pedras e borboletas. Em suma, é uma taxonomia sem teoria biológica e com métodos importados. Como conseqüência, a taxonomia numérica sabe como chegar lá, mas não sabe onde. É uma taxonomia metodologicamente explícita, mas teoricamente implícita.A esta altura, já deveria ter ficado claro para todos que uma sistemática moderna só pode ser filogenética. Essa sistemática tem uma teoria da diversidade e metodologia apropriada. Isto é, sabe onde as espécies se sentem mais felizes e sabe como chegar lá. Teórica e metodologicamente, é uma taxonomia explícita. Todos os trabalho de sistemática filogenética mereceriam um mesmo subtítulo: “cenas de taxonomia explícita.” Além disso, são todos recomendados para maiores e menores.É possível e recomendável treinar sistematas. Os jovens não precisam aprender por imitação ou condicionamento, como chimpanzés amestrados. Eles ainda precisam do conhecimento neural dos espécimes, como todos os taxonomistas, mas podem e devem aprender a teoria e o método. Uma conseqüência notável dessa circunstância relativamente nova é a demolição a que a última geração de filogeneticistas está submetendo o edifício taxonômico tradicional. Se os jovens sistematas às vezes fazem isso com certa arrogância, se freqüentemente trazem nos lábios o sorriso dos oniscientes, podemos