Ao se desfazer da categoria da transexualidade, do discurso fabricado a partir da naturalização e binarismo dos sexos, chegamos à transidentidade vivenciada por João Nery, primeiro trans homem brasileiro. A partir do referencial psicanalítico winnicottiano, em diálogo com a teoria queer, analisamos sua história de vida disponibilizada, sobretudo, em sua autobiografia intitulada Viagem solitária: memórias de um transexual trinta anos depois. O mundo vivido de João Nery é uma caminhada árdua em busca de si-mesmo. Seus dilemas, conflitos, desejos, sonhos, paixões, sofrimentos e alegrias desvelam uma postura espontânea à identidade sexual e de gênero e a disponibilidade em atribuir e recriar sentidos e mais sentidos até onde não havia sentido. A transidentidade aqui compreendida apresenta horizontes de disponibilidade à criação, de matizes originais e a ruptura com as sólidas estruturas da cishetonormatividade. Nesse sentido, criam-se novos modos de ser e existir enquanto sujeito, assim como novas demandas de acolhimento, despatologização e real cuidado no qual a psicanálise tem muito a contribuir ao promover o gesto espontâneo e a reflexão, teórica e no divã, acerca das vivências e caminhos para constituição e amadurecimento de si-mesmo na interface com os mecanismos de controle sexual. O intuito foi ampliar e produzir um saber inserido em uma psicanálise da pós-transexualidade, que não negligenciasse a dimensão humana e complexa identidade trans. Incitamos originalmente um novo espaço para discutir a sexualidade e o gênero enquanto um elemento de criação para a constituição de si-mesmo.