Estudar a Idade Média no Brasil pode parecer um passatempo para curiosos ou, quando muito, uma especialidade acadêmica para alguns poucos especialistas. Afora esse nicho reduzido, o período em questão, usualmente compreendido como se estendendo do século V ao XV, seria mais interessante como material para ficção, a ser aproveitado por escritores ou cineastas. Ora, o que o renomado medievalista francês Jérôme Baschet vem nos mostrar em seu mais recente livro é uma imagem bem diferente da Idade Média e uma que certamente nos toca mais diretamente. A civilização feudal é uma síntese crítica das mais importantes conquistas realizadas pelo estudo da Idade Média desde a obra pioneira de Jacques Le Goff, A civilização do Ocidente medieval (1964), grande mestre a quem Baschet dedica o trabalho. O livro, cujo prefácio é assinado por Le Goff, está dividido em duas partes, além de um capítulo introdutório e outro conclusivo. Na introdução, Baschet nos propõe sua chave de leitura da Idade Média e justifica o aparente desvio de abordá-la a partir da América, isto é, tendo por referência a conquista do continente americano pelos europeus. Essa abordagem, defende Baschet, nos mostra definitivamente que o Ocidente medieval desencadeou imensa força de crescimento e expansão, identificável já por volta do ano mil e que encontrou seu desdobramento mais vigoroso na conquista da América. Nesse sentido, a América nos mostra a força desse elã de crescimento medieval e nos coloca a impossibilidade de continuar falando da Idade Média como uma « Idade das Trevas », fechada em si mesma. Como Baschet mostra ao longo da primeira parte do livro, Formação e desenvolvimento da Cristandade feudal, se houve momentos de maior fechamento, especialmente até o ano mil, a partir de então é evidente uma grande reversão de tendências, que colocou a cristandade medieval em ritmo de crescimento forte e determinante ustamente aquele movimento que desembocaria na conquista da América. E aqui se encontra de fato o ponto central do livro. Revendo as interpretações tradicionais para explicar o desenvolvimento da cristandade medieval especialmente entre os séculos XI e XIII , Baschet conclui que « somos levados a admitir que é impossível compreender o desenvolvimento ocidental sem reconstituir a lógica global da sociedade medieval, que é, definitivamente, a condição fundamental do desenvolvimento, sua causalidade, não inicial, mas global. É, então, preciso empenhar-se em dar uma visão de conjunto da sociedade feudal e de sua dinâmica, deixando para as conclusões toda eventual interpretação do desenvolvimento ocidental. » Nesta formulação, está contido todo o propósito livro, que é o de reconstituir essa lógica global da sociedade medieval. Isso significa, em primeiro lugar, discutir as relações de dominium, que associam domínio sobre a terra e domínio sobre os homens, e a noção de ecclesia, que não se traduz bem por « igreja » ou « Igreja », pois ela remete tanto à instituição quanto ao conjunto dos cristãos, quanto, progressivamente, a um grupo social especifico, o clero. Nesse momento, Baschet defende que a Igreja constituiu o pilar fundamental do feudalismo, idéia que será retomada, retrabalhada e qualificada na segunda parte do livro, destinada a discutir as « estruturas fundamentais da sociedade medieval. Antes disso, entretanto, no último capítulo da primeira parte do livro, Baschet enfrenta a questão da Baixa Idade Média. Se muitos concordam que a Idade Média Central (séculos XI a XIII) é de fato um momento de crescimento, outros tantos julgam que o século XIV, século de crise, marca o fim desse crescimento e encaminha a Idade Média para seu esgotamento. « A Baixa Idade Média: triste outono ou dinâmica prolongada? », pergunta-se o autor. Investigando detalhadamente cada aspecto do assunto, Baschet mostra que não existe ruptura social fundamental entre a Idade Média Central e a Baixa Idade Média (séculos XIV e XV), a senhoria feudal e a Igreja continuam sendo os quadros fundamentais de referência, as cidades continuam a se desenvolver e o poder monárquico continua sua dinâmica de afirmação proveniente dos séculos anteriores. Em suma, conclui Baschet, « existe uma continuidade entre o desenvolvimento da Idade Média Central e a dinâmica reencontrada do fim da Idade Média, de modo que o elã que conduz à Conquista das Américas é fundamentalmente o mesmo que aquele que vemos em marcha desde o século xi. A colonização ultra-atlântica não é o resultado de um mundo novo, nascido sobre o húmus em que se decompõe uma Idade Média agonizante. Para além das transformações, das crises e dos obstáculos, é a sociedade feudal, prosseguindo a trajetória observada desde a aurora do segundo milênio, que empurra a Europa para o mar. Segue uma densa discussão teórica sobre as relações entre Idade Média e América colonial, com diversas propostas instigantes, que certamente interessarão aos historiadores brasileiros, que terão de levar em consideração a reflexão de Baschet. O que o autor propõe, em suma, é um desenraizamento na nossa forma de olhar para a América colonial, cuja alteridade é normalmente atenuada por sua inserção numa lógica de transição do feudalismo ao capitalismo. Baschet sugere que os próprios americanos vejamos a América colonial como um outro mundo, radicalmente apartado do nosso e atrelado a uma lógica muito mais feudal (ainda que de um « feudalismo tardio e dependente », expressão que Baschet propõe para descrever o mundo colonial) do que capitalista. A América colonial seria « um universo radicalmente diferente, bem mais distante de nós do que parece. Mas o autor não se propõe a seguir minuciosamente a historia da América colonial, centrando-se nos primeiros séculos do desenvolvimento medieval. É por isso que, na segunda parte do livro, ele retoma os séculos centrais da Idade Média para levar a cabo seu propósito de reconstituir a lógica global dessa sociedade. Essas estruturas fundamentais são: o tempo, o espaço, a preocupação com a salvação, a dinâmica entre corpo e alma, o parentesco e as imagens. São diversas as sugestões fecundas feitas pelo autor: se a nossa sociedade parece conceder uma primazia ao tempo em detrimento do espaço, não se passaria justamente o contrário na Idade Média, em que aliás o espaço não tem nada a ver com o nosso, contínuo, homogêneo e linear ? O parentesco medieval não é um caso singular entre todos, em que o parentesco espiritual é pelo menos tão importante quanto a aliança (casamento) e a filiação, algo que, por sua vez, implica uma dinâmica de circulação dos bens muito própria dessa sociedade? Essas são apenas algumas das muitas questões que Baschet levanta, mostrando que elas têm uma importância capital para a reprodução global da sociedade. Em sua conclusão, o autor retoma a problemática de reconstituir a lógica global da sociedade medieval e nos mostra que, na sociedade feudal, o peso determinante foi a associação do feudalismo entendido como o conjunto das relações de produção com o « sistema eclesial », isto é, a sobreposição tensa entre Igreja e sociedade. Ao fim da leitura, o autor consegue convencer, em uma prosa agradável, entremeada de 52 imagens, que compreender a sociedade medieval não é tarefa sem importância para qualquer um que se interessa pelo mundo que o rodeia. Trata-se de uma sociedade profundamente diferente da nossa e que nos induz, portanto, a uma necessidade de tomar consciência da alteridade consciência que, para nós, americanos, deve nos afastar de muitos hábitos arraigados que nos forçam a uma determinada imagem da história colonial , uma consciência fundamental num mundo de barbárie e intolerância para com o outro como é o nosso.