Escrita a bico de pena, ao longo do último meio século, com requintes de acabamento dignos de um calígrafo chinês e o senso vertiginoso do mundo-livro do bibliotecário alexandrino, a obra de Haroldo de Campos, que soma hoje 45 peças de bravura, recebe, neste volume, pela primeira vez no Brasil, uma investigação metódica, numa homenagem de fôlego. Para recepcioná-la, enfim, longamente, no momento em que lembramos o segundo ano da morte do poeta, ocorrida em agosto de 2003, reúnem-se aqui trabalhos rigorosamente inéditos de pesquisadores e artistas das mais diferentes áreas, lugares institucionais, gerações, estilos e – como não poderia deixar de ser, em se tratando de alguém tão cosmopolita –, línguas e nações. Incluem-se nesse rol, obrigatoriamente supranacional e transdisciplinar, de leitores de Haroldo os que se reivindicam discípulos, os que só assumem um certo grau de influência, os que não assumem nenhuma influência, mas ainda assim reconhecem os aportes de seu universalismo e de sua erudição, os tradutores espalhados por toda parte – que se deram pressa poética, aliás, em responder à organizadora, animando uma outra convocação, em paralelo, pela internet, que levou a outros nomes, e alguns dos scholars que lá estavam, em 1999, na Universidade de Yale, num congresso internacional coordenado por um professor norte-americano de literatura brasileira – Kenneth David Jackson, por isso mesmo um dos nossos colaboradores convidados –, disposto a enfrentar o legado haroldiano bem antes de nós, que só agora arregaçamos as mangas. Trata-se de uma espécie de círculo hermenêutico-afetivo, em suma, que se fecha em torno de uma obra cujo reconhecimento está ainda por fazer, principalmente entre nós, e, principalmente, em âmbito acadêmico, como parecem provar não só a ausência, por ora, em nosso meio, de estudos críticos disciplinados, mas a monótona insistência de muitos no concretismo das origens deste poeta noigandres que foi ficando cada vez mais versejante e filosófico, senão, talvez, mais abstrato que concreto, ainda que com a ironia de quem sabe que poemas são sempre, inevitavelmente, feitos com palavras. Mas sem que essa vocação afetuosa do livro redunde naquela recepção encomiástica, congeladora do autor em sua majestade, que ele era o primeiro a detestar. Assim, um dos pedidos feitos a cada participante foi que voasse o mais alta e livremente possível – céu acima – para responder, em muitos idiomas e a muitas vozes, à questão mallarmeana de saber em que Ele mesmo, a eternidade finalmente transformou Haroldo de Campos . Só mais um pedido foi feito aos participantes. Para evitar os caminhos já batidos que costumam levar, por inércia, mas também por conta de uma fortuna crítica, geralmente aversiva, que separa e rotula, ao Haroldo tradutor ou transcriador, os ensaios solicitados deveriam, ainda, ater-se, de algum modo, à faceta ou interface menos conhecida ou reconhecida da obra de Haroldo de Campos: a crítica. À crítica haroldiana, que aliou um exigentíssimo padrão de gosto poético a uma enorme e matizada competência universitária, para ficar bem longe daquela mediação do medianeiro médio de que nos fala o poema de Maiakóvski, citado no prefácio de A Arte no Horizonte do Provável , devemos a revisão de algumas idéias feitas sobre a literatura brasileira. Essa parte da obra é, além disso, em termos quantitativos, a mais extensa da intensa herança que ora se recepciona, correspondendo a nada menos que 18 dos 45 títulos até aqui produzidos , se concordarmos em classificá-los por gêneros, esquecendo, por um minuto, que, para um moderno avançado como aquele de que estamos falando, a obra literária é, ao mesmo tempo, retradução poética e operação crítica, e vice-versa. Esquecendo, pois, estrategicamente, que há livros do crítico-poeta que defendem a fusão de todas essas práticas, como é o caso, por exemplo, de A Operação do Texto (1976), enquanto que outros a performam, sendo tudo ao mesmo tempo, criação e comentário, e com a mesma fúria percussiva, o que se pensou foi em tentar dar a ver, desde o eixo da crítica, toda a galáxia. Assim, os trabalhos rigorosamente inéditos que se seguem tratam de articular crítica com criação/tradução/tradição crítica/ artes, numa primeira seção, que aqui chamamos, apelando para uma fórmula propositalmente híbridizante, e sem medo do latinório , de Ars Critica. Diante das profusões de Haroldo, essa organização, inevitavelmente artificiosa, por vezes funciona, por vezes, não funciona. Quando não funciona, pode ainda nos ajudar a ver o mélange dos gêneros haroldianos, da mesma maneira que temos visto a crise estrutural das narrativas modernas em seu inacabamento exemplar: como o malogro que prova a vitória do projeto. Segue-se, numa segunda seção – Personário –, um conjunto de tributos em forma de textos e poemas de circunstância. O poema de circunstância é um gênero nada menor, que o próprio Haroldo praticou, como quem sabe, de cátedra, que tudo pode servir de pretexto à poesia. Desse álbum, que aqui mantemos em sua confusio linguarum ou em seu estado plurilíngüe – para auspiciar a reconversão poética de Babel em Pentecostes, como diria ele –, participam artistas de toda parte do Brasil e daquele mundo estrangeiro de que Haroldo nos mostrou, que não estávamos culturalmente cortados, já que não há culturas nem conclusas nem periféricas, quando se pondera, diante de um Gregório de Mattos, por exemplo, que o gênio americano já se ergue, desde a não-origem ou o fundo-sem-fundo de nossa identidade, falando barroco. O volume encerra-se com uma terceira seção – Um Chá na Monte Alegre –, que traz uma comovente entrevista, de raro tom intimista, dada na casa da Rua Monte Alegre, numa tarde – definitivamente – de outono. Trata-se de um depoimento que, pela data – maio de 2003 – deve ser o último, pelo menos longo, dado por Haroldo. Nessa conversa, entretida com uma jovem doutoranda da PUC – a universidade ao lado, onde ele foi professor, e é assim o locus mesmo da revolução de trezentos e sessenta graus graças à qual se subverte a explicação da literatura brasileira pelo paradigma do atraso e da falta, ele nos fala, até onde chegamos, pela primeira vez, da família da mãe, meio irlandesa, meio quatrocentona, e do gosto literário e o ouvido musical do pai. E ainda, dos muitos planos que a morte, dolorosamente à espreita (embora também, de algum modo desejada, já que ele estava então de volta a Ítaca, como cansado de tanto viajar), acabaria interrompendo. Figura entre esses planos a continuação que o poeta tinha em mente para um seu livro do final dos anos 1980, que é constrangedoramente ignorado, até hoje, entre nós, por ser uma deliciosa pièce à scandale: O Seqüestro do Barroco na Formação da literatura brasileira – O Caso Gregório de Mattos. O ponto alto da entrevista é um pedaço de conversa em torno dessa importante obra crítica que, embora tenha sido (mal) interpretada, pelos poucos que realmente a leram, como um insulto ao autor da Formação da literatura brasileira, não apenas desenvolve-se como diálogo elegante, que se faz, por vezes, irônico-cortês, mas carrega o refinamento de um certo espírito francês da desconstrução, que é tão devedor de Jacques Derrida, aí evocado, de saída, quanto dos dissídios dos grandes simbolistas e da virada crítica de Roland Barthes às voltas com a Sorbonne, como se pretende demonstrar. A presente homenagem não teria sido possível sem o aval corajoso e a colaboração certeira de Jacó Guinsburg, que abriu sua prestigiosa editora – a Perspectiva, outro locus paulistano da obra haroldiana, para esta tentativa de aproximação da mais galática das escrituras. Mas este livro – que entra em edição especial na coleção Signos, dirigida pelo poeta Augusto de Campos, também deve muito a outros especialistas e amigos de Haroldo. Lembro aqui André Vallias, Augusto Contador Borges e Claudio Daniel, que sabem tudo sobre os muitos tradutores do poeta, por nos terem feito chegar até eles e, através deles, a outros ainda. Lembro também a tradutora Inês Oseki Depré e a filósofa Olgária Matos, que nos ajudaram no contato com os franceses, ao longo de todo ano de 2004, de seu posto em Paris e em Aix. Gostaria ainda de agradecer o compositor Livio Tragtenberg, que editou o CD que acompanha este tombeau para Haroldo de Campos, permitindo-nos ouvir a viva voz apaixonada do poeta que, sem que soubéssemos, assim se despedia. E ainda, a toda a equipe da Perspectiva. Último, mas não menos importante, agradeço a viúva de Haroldo – a Carmem –, que vela hoje pela alma da casa da Rua Monte Alegre. É desse solar de poesia que nos vêm, escolhidas a dedo, as extraordinárias fotografias aqui recolhidas, registros dos muitos encontros de Haroldo de Campos com muitos dos mais importantes intelectuais e artistas do século XX, que pedem para ser vistos como verdadeiros flagrantes de uma vida virando texto (como no poema meninos eu vi), de tanto que a vida de Haroldo moveu-se em torno da literatura. Os amantes da literatura francesa de vanguarda, que é fonte para a obra de Haroldo, sabem que Alfred Jarry não fez por menos que acorrer, trajado de ciclista, às exéquias de Mallarmé, em setembro de 1898, saudando assim, em estilo ubuesco, a poesia feita de palavras, no momento mesmo em que ela ingressava na eternidade. Sob a inspiração de tal gesto de leveza da parte deste outro moderno que virou eterno, o presente livro busca com alegria a verificação da hipótese da eternidade da obra de Haroldo de Campos.