Affonso Romano de Sant’Anna trabalha com os "vestígios" fornecidos pela memória e procura tecer o sentido da vida, através de suas experiências, lembranças e uma acurada observação da natureza humana para dar forma ao seu novo livro de poemas. Vestígios é uma pacificada reflexão sobre a existência, com a maturidade de quem já protestou, já se esbravejou, já se confrontou e que, agora, descansa as armas e contempla - entre surpreso e ativamente reflexivo -, as incoerências da vida e a impermanência das coisas. O poeta nos coloca diante do imponderável, não com o sentimento de conformação, mas na aceitação madura de quem viveu com os olhos muito abertos, buscando e querendo entender os mistérios da vida. O lançamento celebra ainda os quarenta anos de sua estréia em versos, com o aclamado Canto e palavra, de 1965. O livro tem algumas vertentes bastante marcantes e, uma delas, é o confronto do poeta com a passagem do tempo, o envelhecimento e a morte, cujo poema-chave parece ser "Mudanças e Retornos", onde ele costura as pequenas e tênues lembranças, num reencontro com a outra margem de si mesmo, com o cuidado e o empenho que este "último começo" exige para a sua realização, agora, aos 67 anos de idade. Nenhuma morbidez percorre essa descoberta do envelhecer, muito pelo contrário, são observações de profunda delicadeza e sensibilidade, levando o leitor a se comover e a acompanhá-lo nesse mergulho no abismo interior das suas reminiscências, como descrito no poema "Aquele menino". Em outra vertente, o poeta verseja sobre a mesquinhez do homem em poemas tocantes, como "O homem-bomba", "Lapidar uma mulher" e "A Biblia não previu". A sua decepção com as antigas convicções leva-o a constatar que "está cheia de vazios a nossa fala" e, surpreendentemente, não retoma a sua reconhecida luta por um país melhor, descrevendo o Brasil apenas como "uma ferida aberta / no meu peito // que tento cicatrizar / mas não tem jeito". Na série de nove pequenos poemas intitulados "O homem e sua sombra", em "Elegia 2004", o poeta se mostra preocupado com o destino da natureza humana, fazendo também sua dura crítica aos homens em "Involução das espécies": "Estes não têm espinha dorsal / embora finjam ter essa postura / nos governos escritórios e coquetéis." Affonso Romano de Sant’Anna ainda se revela, neste lançamento da Editora Rocco, um apaixonado por viagens, através de poemas belíssimos, onde fala de seus encontros com os cenários míticos da história e seus personagens. Buscando Pasárgada, o paraíso imaginário do poeta Manuel Bandeira, encontrou uma lição de ruínas, onde percebeu que somente a poesia é capaz de reinar. A poesia, com sua oficina de letras, palavras e frases, criando reinos, sons, sensações e sentidos, como no poema "Palavras", onde traz definições simbólicas, táteis e sonoras para: "CRISTAL / palavra sonora / iridecente / eco / irradiante e musical" ou ainda: "AROMA / termo que ressuma / e assoma / e levemente perfuma", e outras mais. É desnecessário prosseguir citando este ou aquele poema. O leitor, com o livro nas mãos, pode abrir aleatoriamente qualquer das 182 páginas e certamente vai encontrar uma meditação sobre o vivido, sobre encontros e desencontros, sobre a infância, a adolescência, a relação amorosa. Vai percorrer, juntamente com o poeta, o caminho estético para um plano ideal de existência. Vai se deparar com um foco de luz lançado sobre o seu cotidiano que, na maioria das vezes, nem é notado pelos mortais comuns. O poeta preenche o vazio de nossas observações com a sua linguagem simbólica, plena de sentido e significado.