No mês de novembro a Editora Rocco dará início às comemorações do centenário de nascimento de Clarice Lispector, com a edição dos seus três primeiros livros, todos escritos antes que ela completasse 29 anos de idade. Toda a obra de Clarice será reeditada, entre novembro do corrente ano e 10 de dezembro de 2020 (data exata do centenário), com um novo projeto gráfico tanto de capa quanto de miolo, assinado pelo prestigioso designer Victor Burton, detentor de uma dúzia de Prêmios Jabuti. Além disso, os livros serão enriquecidos com ensaios de importantes críticos e estudiosos, publicados como posfácio, em duas opções: brochuras e livros de capa dura. O lustre É das obras mais difíceis de Clarice. A narrativa é claustrofóbica, com a ação ocorrendo mais na mente dos personagens do que no mundo externo. Teve recepção crítica morna, o que entristeceu a autora. O posfácio é de Parul Sehgal, crítica literária do New York Times. Em O lustre a sensação de inquietude é ainda mais intensa. Trafega-se, a maior parte do tempo, pelo mundo interior da protagonista, Virgínia, desde sua infância numa fazendola em um remoto vilarejo do interior até a vida adulta numa cidade grande e solitária. Clarice não permite ao leitor jamais ter completo acesso ao que se passa do lado de fora a não ser na crua e, talvez, surpreendente cena final. No universo subjetivo da escritora, a única clareza está nos sentimentos. Virgínia ama seu irmão, Daniel, sua alma gêmea, seu senhor. Virgínia ama seu amante, Vicente, a quem conhece tão pouco... A história é contada como num jogo de luzes e sombras, cada parágrafo permitindo apenas antever, de relance, a força sufocante de tanto amor. Apesar de sua absoluta beleza, O lustre talvez seja, entre as excepcionais obras de Clarice Lispector, a menos comentada. Dele, quase nao se pode falar (e sim absorve-lo), pois nao contem aquelas materias de que se servem os romances para auxiliar-nos a fixar os acontecimentos. Embora bem pouco ocorra, sabe o leitor que algo terrivelmente forte e de grande densidade esta sendo posto em movimento, expandindo-se sem cessar, nao por meio de uma progressao de fatos, mas por experimentos da lingua, o seu amago, a um tempo polida e selvagem. As economicas falas, as cenas descritas e as apreciacoes sobre o mundo exterior inserem-se em um campo verbal regido pelo fenomeno do fermentar, sendo as paginas cada vez mais e mais acrescidas de camadas e camadas de vocabulos, imagens e pensamentos providos (e geradores) de uma justeza estetica, filosofica e afetiva inigualavel. Sem defender ideias, apresenta-se o proprio ato de pensar, seu minucioso processo de formacao, constituido de subitas clarividencias e de assombroso vigor, lancando-nos na crua e complexa materialidade das articulacoes mentais imaginacao e pensamento, por frases limpidas e, contudo, cheias daquela violencia de vida que rarissimas obras sao capazes de atingir. Conviver com toda especie de coisas: as comuns, as rudes, as excluidas. Aproximar-se dos multiplos estados de espirito, extrair-lhes os necessarios nutrientes. E assim fortalecer a vontade, para entao ser capaz de escalar a existencia, ir de um ponto a outro, ampliando a visao e o saber. Nao se trata portanto de um livro ou de uma historia a ser contada. Trata-se de valiosa e impressionante operacao de arte. Por isso nao e possivel reter na memoria, senao naquela que se encontra distribuida por todo o corpo, envolvendo especialmente a respiracao e o sangue. ROBERTO CORREA DOS SANTOS, Ex-professor de Teoria da Literatura e de Semiologia dos Programas de Graduacao e Pos-Graduacao em Letras da PUC-Rio e da UFRJ.