Painel da vida do povo russo no século XVIII e da grande revolta popular que, nesta época, no longínquo Volga, quase abalou o trono imperial de Catarina a Grande, A Filha do Capitão é uma obra em que a força de um escritor de gênio faz da evocação de fatos e lances históricos uma vivida atualidade ficcional, capaz de reatualizar-se, em qualquer tempo e em qualquer língua, na imaginação do leitor. Mas, no contexto desta presentificação épica, o que se faz presente é muito mais do que invocação fantasiosa, pois o que se coloca com os acontecimentos, e em função deles, é o corpo inteiro de uma nação com seus processos fundamentais, vistos, realisticamente, na realidade de um momento histórico. Por isso mesmo, esta criação de Púchkin, estro seminal da individualização nacional da literatura russa, pôde constituir-se em um texto exemplar de um gênero de produção ficcional dos mais expostos aos falsos brilhos e aos romantismos melodramáticos ou rançosos, como é, muitas vezes, o romance histórico. Trazendo-a para o português numa tradução direta e realizada com todo cuidado e aparelhamento críticos necessários, Helena S. Nazario nos permite uma leitura tão pouco mediatizada numa tradução que transpõe não só a letra como o espírito do original. Mas o seu trabalho foi além, e no agudo estudo com que acompanha esta versão, desvenda jogos essenciais da escritura puchkiniana em A Filha do Capitão e a presença no texto de um verdadeiro espírito hegeliano da História, uma lei dialética a orquestrar e dirigir o movimento e o sentido de seu universo-objeto.