No mês de novembro a Editora Rocco dará início às comemorações do centenário de nascimento de Clarice Lispector, com a edição dos seus três primeiros livros, todos escritos antes que ela completasse 29 anos de idade. Toda a obra de Clarice será reeditada, entre novembro do corrente ano e 10 de dezembro de 2020 (data exata do centenário), com um novo projeto gráfico tanto de capa quanto de miolo, assinado pelo prestigioso designer Victor Burton, detentor de uma dúzia de Prêmios Jabuti. Além disso, os livros serão enriquecidos com ensaios de importantes críticos e estudiosos, publicados como posfácio, em duas opções: brochuras e livros de capa dura. Perto do coração Selvagem foi a estreia literária de Clarice Lispector, quando a autora tinha apenas 22 anos de idade, e causou grande impacto, suscitando artigos elogiosos de críticos e escritores. Esse foi um ano fundamental na vida de Clarice, além de publicar o primeiro livro, ela obteve a cidadania brasileira, casou-se e diplomou-se em Direito. O posfácio é de Nádia Battella Gotlib, autora da Fotobiografia de Clarice, editada pela EDUSP. A leitura é caleidoscópica. A protagonista ora tem uma cor, ora outra, conforme o momento ("real" ou onírico). As cores dançam no enredo misturado ao cenário e às sensações da menina-mulher-amante. Joana desfila na vida dos outros personagens, destilando o veneno de víbora, instilado com ironia e respostas cruéis diante dos fatos. A leitura também é lúdica, quando o leitor tenta adivinhar o que a autora preparou páginas adiante e se surpreende com o que presencia. O surgimento de Perto do coracao selvagem, em 1943, causou grande impacto no cenario literario brasileiro, proporcionando a autora aclamacao imediata da critica e de seus colegas escritores.Houve quem encontrasse no livro a influencia de Virginia Woolf, ao passo que outros apostavam em Joyce, seguindo a falsa pista da epigrafe da qual Clarice pincou seu titulo: Ele estava so. Estava abandonado, feliz, perto do coracao selvagem da vida. Ambos os grupos estavam errados, apesar do uso do fluxo de consciencia pela escritora estreante a justificar tais correlacoes. Ocorre, no entanto, que esse havia sido um achado natural e espontaneo para Clarice Lispector, que admitiu como unica influencia neste caso O lobo da estepe, de Hermann Hesse. Nao em termos estilisticos tampouco por se identificar com o carater do protagonista, mas sim por compartilhar com ele e, sobretudo, com Hesse, o desejo imperioso de romper todas as barreiras e ultrapassar todos os limites na busca da propria verdade interior. Anseio personificado pela personagem central, Joana, com uma expressao que se tornou celebre: Liberdade e pouco. O que desejo ainda nao tem nome. Intima e universal, destemida e secreta, Joana sentia o mundo palpitar docemente em seu peito, doia-lhe o corpo como se nele suportasse a feminilidade de todas as mulheres e ela destoava do sistema patriarcal em que se encontrava inserida da mesma forma que Clarice se distanciava da literatura de seu tempo, ainda dominada pelo regionalismo e o realismo. Ambas, autora e protagonista, eram forcas divergentes, porem nao dissonantes, ja que introduziam uma nova musicalidade, uma harmonia propria, poetica e triunfal, na aspereza circundante, enquanto buscavam o centro luminoso das coisas sem hesitar em mergulhar em aguas desconhecidas , deixando o silencio e partindo para a luta. Deste embate a beira do intimo abismo, Joana torna-se uma mulher completa e Clarice, uma escritora singular e inimitavel.