A Constituição Federal promulgada em 1988, ao reconhecer e prestigiar a organização social, a cultura e o vínculo dos povos indígenas com suas terras para a manutenção de seu estilo de vida, superou no âmbito normativo a ideologia assimilatória e etnocêntrica que pautou historicamente as relações entre o Estado e a sociedade dominante com os povos indígenas. A compreensão do sentido e alcance de dispositivos constitucionais que quebram paradigmas há muito tempo estabelecidos requer do hermeneuta espírito aberto a interpretações que extraiam a maior eficácia possível da norma, ainda que contrariando noções tradicionais. O julgamento da constitucionalidade e legalidade da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol firmou a distinção entre território e ‘terra’ com o fito de desautorizar qualquer anseio dos povos indígenas a uma projeção política diferenciada, vai de encontro à própria Constituição Federal e a instrumentos internacionais subscritos pelo Estado brasileiro nos quais a utilização do termo ‘terras’ inclui o conceito de ‘territórios’. Ao admitir que os povos indígenas têm direito a ser um grupo diferenciado na sociedade nacional a Constituição desafia seus intérpretes a fixarem os novos termos da relação entre o Estado, a sociedade dominante e os índios, o que envolve a definição do conteúdo e significado do conceito de terras indígenas, tanto pela natureza do vínculo que une os povos indígenas a suas terras quanto pelas questões envolvendo sua gestão econômica e ambiental, o que repercute nos seus direitos à autodeterminação e ao desenvolvimento. A ressignificação do conceito clássico de território mediante a incorporação do seu significado antropológico torna o conflito entre o princípio da unidade política e a autodeterminação dos povos indígenas apenas aparente e enriquece o conceito jurídico, extraindo do texto constitucional interpretação que amplia seu alcance e eficácia.