Foi com uma breve espiada na janela do vizinho que tudo começou. A luz clara da manhã reverberava no alumínio das esquadrias. Algo estranho, no entanto, embaçava a percepção - uma água escorrendo, como se a vidraça derretesse. Espanto. Piscar dos olhos para desfazer a desagradável sensação. Inútil. Ao abri-los, o vidro continuava a desmanchar-se, gotas deslizavam, a janela da frente deliquescia. Daí por diante, tudo se precipitou. Um buraco na mácula do olho esquerdo, uma operação, um olho só para tudo, meses de prisão domiciliar - e como a vida odeia o vazio, impôs-se, incontrolável, o exame das obsessões presentes e o mergulho em um passado que jazia, ignorado, no fundo da memória. É desse mergulho, transformado em escrita, que aqui se trata. O mundo real veio à tona aos borbotões, numa trama em que ao analista real acrescentou-se o virtual, ouvinte mudo de um estranho diálogo. [...]