Ao longo deste livro, a noção de limite, tão cara a Descartes manifesta tanto no gesto de traçar, de uma vez por todas, as fronteiras do que pode ser clara e distintamente conhecido quanto nesse outro movimento, dependente do primeiro, mas não redutível a ele, de escolher o que pode ou não ser escrito publicamente, é visada a partir do interior de seu próprio pensamento. Trata-se então de habitar essa terra de ninguém que é o próprio limite, espaço sem extensão que nos força a cambiar continuamente entre os domínios que ele divide, o pensável e o impensável, o dizível e o indizível. Permanecer no limite e fazer nele reverberar os signos que o compõem nos levará a explorar também esse outro signo, o ódio, entendido como um esquema afetivo de subjetivação. Que o ódio seja tomado não como uma causa psicológica que explica a relação de Descartes com a escrita, mas, antes, como sendo, ele mesmo, um signo, representado em seus escritos ao lado de outros, determina o método deste estudo, restrito à imanência do texto e comprometido com a recusa de qualquer abordagem referencialista ou causal. Nenhuma realidade para além ou aquém dos signos a vida de Descartes, suas intenções ao escrever isto ou aquilo, o contexto social de sua produção ou a realidade descrita por suas teses filosóficas será usada, ao longo destas páginas, como princípio heurístico. Paradoxalmente, porém, a decisão de permanecer no interior do pensamento de Descartes nos forçará a percorrer seus impasses e fissuras, sem síntese possível. O interior, na verdade, nunca foi dado nem nunca existiu como um todo autocontido. Entre ele e seu fora, incontáveis fronteiras multiplicam-se.