A fragmentação da consciência, considerada um dos princípios fundadores do modernismo, desencadeou de forma correlata a ideia de fragmentação do corpo. No período entre o fim do século XIX e a Segunda Grande Guerra, diversos artistas e escritores se voltaram para a criação de imagens do corpo dilacerado, dispostos a subverter a tradição do antropomorfismo para inaugurar uma estética contemporânea aos dilemas de seu tempo. Em O corpo impossível - escrito num estilo de notável clareza -, Eliane Robert Moraes recompõe o itinerário desse imaginário. Para tanto, promove uma análise da vertente do modernismo francês que vai de Lautréamont aos surrealistas, com particular atenção ao pensamento de Georges Bataille. Daí resulta uma fina interpretação do tema, cuja originalidade está justamente em colocar história e estética em diálogo. O homem moderno procura na arte o mesmo que na farmácia, "remédios bem apresentados para doenças confessáveis", diz Georges Bataille, o estranho anjo inspirador desse livro sobre a figura do homem decapitado na literatura do século XX. Mas essa farmacopeia o leitor não encontrará em O corpo impossível. As doenças aqui tratadas são as piores, indo do fascismo até suas atuais versões mitigadas, isto é, a infelicidade a que nos resignamos numa rotina racionalizada. A doença está, por exemplo, no corpo bem modelado da estética nazista. E os remédios não são bonitinhos: eles exigem lidar com fantasias de terror, com o medo da castração e do despedaçamento, com a vergonha ante esse parente do rosto que é o ânus. Nada é bem o que parece. O que nos tranquiliza são as expressões ponderadas, o equivalente de sabonetes ou escovas de dentes, de uma higiene que nos proteja da escória e da morte. Mas que não protege. Excluindo de nosso olhar o assustador, só conseguimos que ele invada nossas noites. Escondendo pelos cantos as penetrações estranhas, só fazemos que penetrem cada recanto da vida.