'Vestir os nus' é a segunda obra de uma série de textos revistos e "transubstanciados" por Millôr Fernandes para a Civilização Brasileira. Entre roteiros para cinema, peças de teatro e seus mais de 30 livros publicados, Millôr também traduziu clássicos como A megera domada, de Shakespeare, Antígona, de Sófocles e Escola de mulheres, de Molière. O escritor Ludovico Nota recolhe em sua casa Ersilia, uma jovem cujo drama pessoal a imprensa acaba de contar; primeiro despedida do seu lugar de ama depois da morte acidental da criança que tinha ao seu cuidado, a seguir abandonada pelo noivo, tentou suicidar-se. Depressa nos aperceberemos de que a narrativa de Ersilia não está bem conforme a realidade, que ela de certo modo "vestiu" o seu suicídio com uma história que faz dela uma vítima exatamente como deve ser. Quer dizer; a infeliz Ersilia mentiu, não mereceu portanto as lágrimas que derramaram por ela. A sua tentativa de suicídio não foi, no entanto, fingida, e Ersilia tem muitos motivos para reivindicar o título de vítima que agora lhe é negado. Será a vergonha de aparecer nuamente como aquela vítima que a terá conduzido a inventar para si uma outra imagem sua, mais bem vestida, mais conveniente, mais conforme? Em 'Vestir os nus', Pirandello faz certamente incidir uma luz premonitória sobre estes processos de vitimização tal como os conhecemos hoje na nossa famosa sociedade do espectáculo chegada ao estádio da "tele-realidade". Enquanto "humorista", Pirandello não se pode impedir de escrutinar o caos íntimo dos seres reais por trás das belas imagens com as quais cada um quereria parecer-se, faz impiedosamente cair as suas máscaras sabendo sempre talvez que a sua nudez não dará por isso acesso à sua verdade. Sonda e aviva assim o nosso olhar de espectador - que gosta de se imbuir da infelicidade dos outros ou perfurar o seu segredo - com a intenção deliberada de não o satisfazer; quando a arte se propõe a ambição de deixar a vida surgir no que ela tem de informe e irredutível é o espectador que está nu.