A Editora Globo traz de volta ao mercado Molloy, de Samuel Beckett, uma das obras-primas do romance moderno, em tradução exemplar de Ana Helena Souza. O livro contém, ainda, esclarecedor prefácio da tradutora, cronologia da vida do autor e completa bibliografia de sua vasta obra. Samuel Beckett foi, com Kafka, um dos grandes tradutores do mundo contemporâneo. Kafka era um fabulista que adotou o estilo do realismo, revelando ao mundo real sua condição de pesadelo. O "pesadelo da história" de que fala Joyce. E que Kafka viveu no período da longa noite da I Guerra. Beckett o viveria na noite ainda mais escura da II Guerra (de que participou juntando-se à Resistência Francesa) e dos crimes nazistas. O que levou Adorno a decretar a própria impossibilidade de ainda se fazer poesia. É essa impossibilidade, isto é, a falência da linguagem em dar conta de uma realidade não inefável, como no tempo dos mitos, mas nefanda, que está na origem dos silêncios significantes de Beckett em seu teatro. Beckett, porém, foi o caso raro de um verdadeiro polígrafo, que escreveu obras-primas em todas as linguagens: do teatro (sua face mais famosa) à poesia, passando pelo romance. E no romance (que "o próprio autor coloca num patamar mais elevado", segundo a prefaciadora), como neste Molloy, Beckett adotaria estratégia lingüística oposta. Se seus personagens dramáticos são incapazes de entender o mundo (até silenciarem, seguindo a lição de Wittgenstein: "o que não sei dizer, devo calar"), seus personagens romanescos são incapazes de compreender a si mesmos. Mas essa incompreensão de si é uma forma de vazio. E se o vazio do mundo não permite dizê-lo, o vazio de si não permite calar-se. Daí seus personagens romanescos terem - como no caso exemplar de Molloy - uma fala compulsiva, ansiosa e entrecortada. No caminho contrário do silêncio significativo de seu teatro, um ruído (quase) significante. Molloy (primeira parte da famosa "trilogia do pós-guerra", integrada ainda por Malone morre e O inominável) divide-se em duas seções. Na primeira, é o próprio Molloy, o "narrador-narrado", quem fala; na segunda, é Moran, homem encarregado de vigiá-lo (sem que saiba bem por quê, à la Kafka). A história que os dois - cada um à sua maneira - tentam registrar, é a das idas e vindas de Molloy, num vai-e-vem que alterna lugares abertos e fechados, a partir do apartamento de sua mãe - e que mimetiza os impasses das frases curtas e da própria linguagem, que deveria "abrir" o mundo mas se fecha sobre si mesma. Não por acaso, no caso de Moran, que começa objetivo, i. é, objetivo na linguagem e centrado em seu objeto (Molloy), essa objetividade acaba por perder-se até aproximá-lo da linguagem do próprio Molloy. Não falta ação dramática ao romance, incluindo um caso de amor e um de morte. Mas a verdadeira "ação", tratando-se de Beckett, está na própria linguagem - ainda que seja a de comunicar a incomunicabilidade moderna.