Num momento histórico em que o mundo se apresenta para muitos como uma cisão absoluta entre um Ocidente cristão e um Oriente islâmico, A sexualidade no Islã, de Abedelwahab Bouhdiba, relativiza um dos principais pontos de oposição entre os povos ao fazer uma leitura minuciosa e reveladora das escrituras sagradas e da literatura teológica muçulmana. Tendo como ponto de partida o Alcorão, o autor apresenta uma instigante relação entre as escrituras tradicionais e os valores que delas derivaram para a composição do imaginário sexual dos seguidores de Alá. Enquanto o Ocidente criou uma imagem do islamismo como uma religião assentada na repressão absoluta da sexualidade, Bouhdiba demonstra que o Alcorão não elege o prazer carnal como origem do pecado, tal qual o cristianismo. Ao contrário, os gozos do corpo são uma espécie de fonte e de prova da existência do poder divino de Alá. A arquitetura do livro, originalmente tese de doutorado do autor, é um desafio na medida em que busca não apenas realizar uma análise minuciosa dos textos islâmicos, mas também apontar para decorrências sociológicas concretas da fé islâmica, apontando para as diversas formações históricas do amplo tecido social que compõe o mundo árabe-islâmico. Esse ambicioso objetivo termina por dar ao livro um dinamismo incomum na historiografia e na teologia e, é bom que se diga, literatura obrigatória e não datada, pois permanece inserida nos atuais debates políticos a respeito da liberdade sexual nas sociedades islâmicas. Nos oito capítulos iniciais que compõe a primeira parte do livro, Bouhdiba explicita a ambivalência com que o Alcorão trata a sexualidade, conferindo a ela um lugar central na vida e no além-vida, mas ao mesmo tempo, realizando partilhas morais entre as condutas lícitas e ilícitas. Essa ambivalência islâmica, chamada por Bouhdiba de dialética do erótico e do sagrado, é didaticamente explorada por temas em cada um dos capítulos. Questões como a relação sexual permitida e exaltada (nikah), as relações ilícitas (fora do casamento), a tolerância à poligamia masculina, a separação radical entre os sexos e seus papéis sociais (fonte da ojeriza islâmica ao homossexualismo, principalmente o masculino) são cuidadosamente tratadas de forma a mostrar que o islamismo, muito mais do que o cristianismo ou o judaísmo, tematizou a sexualidade. Explicitação disso é a instigante análise da exaltação do orgasmo sexual no paraíso reservado aos fiéis virtuosos contraposta a um inferno marcado pela solidão e pela ausência do prazer. As análises são saborosa e meticulosamente salpicadas de citações dos textos sagrados e profanos (do qual se destacam os contos do Livro das mil e uma noites), recurso eficiente para guiar leitores com diferentes níveis de conhecimento sobre o tema. Enquanto a primeira parte do livro se encarrega de apresentar o lugar da sexualidade nos textos sagrados islâmicos, desnaturalizando a forma como o Ocidente a esteriotipou, a segunda confere materialidade, apontando as decorrências sociológicas do dogma religioso. Em cinco densos capítulos, o autor desenvolve uma importante tese: as diversas formações sociais que se assentaram sob a fé islâmica realizaram leituras particulares que progressivamente se distanciaram dos textos sagrados. Esse processo é particularmente descrito nos últimos capítulos do livro, nos quais Bouhdiba mostra que o papel conferido à mulher pelo Alcorão foi cristalizado nas sociedades islâmicas, tornando o sexo feminino refém de sua própria centralidade. Em outras palavras, a figura da mãe é hiper-valorizada concomitantemente ao desenvolvimento de um imaginário misógino que inferioriza as mulheres de maneira radical. A assimilação dos costumes ocidentais é ressignificada e dá às práticas históricas, como o concubinato e a prostituição, novas configurações que potencializam a submissão feminina. A própria concepção sagrada dos fruídos corporais passa a ser vista como um tabu; fluídos e secreções, tidos anteriormente como impurezas espirituais, são realocados sob os domínios da higiene medicinal. Os banhos públicos, instituição importante na organização da sociabilidade nas sociedades islâmicas tradicionais, se tornam anacrônicos ou até mesmo proibidos, apenas para citar um exemplo dentre tantos outros discutidos no livro. Por fim, o autor não se isenta de um posicionamento político, no qual busca conciliar a defesa da liberdade sexual justamente pelo prisma de uma valorização da tradição. Essa postura é instigante, uma vez que normalmente se prega que as nações islâmicas só conhecerão o fim da opressão sexual das mulheres quando se distanciarem da fé em Maomé. Ao contrário, Boudhiba considera que a junção de valores ocidentais, tidos como modernos, a uma leitura particular da teologia islâmica se configura numa confluência perversa que faz da sexualidade uma prática vazia de sentido e marcada por um utilitarismo egoísta, centrado apenas no prazer individual. A maestria com que Bouhdiba realizou uma análise erudita e sensível da sexualidade nos textos sagrados ao mesmo tempo em que aponta para os dilemas das condutas sexuais no mundo árabe-islâmico faz de A sexualidade no Islã, finalmente traduzido para o português, uma referência obrigatória para aqueles que se recusam ao estereótipo fácil da religião dos outros.