A obra Quiçá é protagonizada pelo jovem Arthur, parente do interior, anatematizado pela família, e Clarissa, a solitária prima de 11 anos, boa aluna e boa filha. O primo passa a ser, com o decorrer das semanas, o único olhar a definir e entender Clarissa, ante a discreta desconfiança dos pais da menina, ausentes do seu dia a dia. As cenas fragmentárias do romance revelam vidas descosidas umas das outras: nas relações a dois, nas relações familiares e nas amizades, tudo soa precário. Mesmo a ligação que une Arthur e Clarissa não se dá por inteiro, e alguns segredos desconfortáveis assomam como breves fantasmas ao longo do texto. Uma reunião de Natal, a que toda a família comparece sem vontade, apenas sublinha o esgarçamento do tecido que uma vez os uniu. O romance mostra inequívocas qualidades literárias, e com o seu tom impressionista, atento aos detalhes sutis do contato humano, consegue prender o interesse do leitor por meio de bom domínio técnico. O texto tem um ouvido especial para a linguagem coloquial contemporânea da nossa classe média urbana, reelaborando-a estilisticamente por recursos sintáticos (e às vezes gráficos), sem perder, entretanto, o eixo narrativo que lhe dá substância. Do ponto de vista estrutural, Quiçá se realiza em três tempos, uma proeza para qualquer escritor: a) um ano letivo, no qual Arthur passa na casa dos tios, após ter sido internado por tentativa de suicídio; b) um dia, um almoço de Natal que reúne toda a família; c) uma vida, nas pequenas revelações diárias. Neste conjunto cênico que se entrelaça, transparece uma descrença corrosiva, mas sem ênfase, que parece esvaziar a possibilidade de uma vida libertadora; o possível são apenas lampejos erráticos de pequenos roteiros sem transcendência. Pelo bom equilíbrio entre forma e intenção, Quiçá é um livro que envolve e faz pensar.