Em Seringal, do romancista Miguel Jeronymo Ferrante, a floresta amazônica é ao mesmo tempo realidade opressiva e alimento para os sonhos do protagonista Toinho, cuja trajetória acompanhamos desde a infância até o amadurecimento, culminando numa libertação final marcada pela violência. Ambientado no Acre do início do século XX, o livro que inspirou a minissérie Amazônia: de Galvez a Chico Mendes, da TV Globo, entrecruza diversas histórias de seringueiros, formando um mosaico no qual a luta contra a natureza inóspita é a moldura para uma disputa ainda mais sangrenta, de homens contra homens. Toinho muitas vezes aparece em segundo plano, à espreita, testemunhando as personagens que transitam à sua frente e que são figuras emblemáticas da vida brasileira: o coronel autoritário e paternalista, o médico que se transforma em político venal, o padre indignado com as injustiças do mundo, a jovem ultrajada e uma miríade de homens cujo desejo de amancipação social acaba se desfigurando em selvageria. O trabalho no seringal leva o pai de Toinho à morte, obrigando-o a viver como agregado no feudo do coronel Fábio Alencar: No barracão, ninguém apercebe a existência de Toinho. É uma ‘cria’. Como um cão. Um gato. Um animal enjeitado. Não lhe perguntam aonde vai ou o que faz. Come na cozinha, com a famulagem. Ou seja, só resta ao órfão esperar por uma colocação, uma casa em outra propriedade, onde passará toda a vida seguindo a mesma exígua trilha de seringa, no ergástulo desalentador da mata, colhendo e defumando o látex para o coronel Fábio Alencar, até lhe fraquejarem as pernas, as doenças lhe minarem o organismo, a fumaça do urucuri lhe cegar os olhos. E morrer um dia como viveu, anonimamente, esquecido dos deuses e dos homens. Nesse livro sem maniqueísmo, porém, o sentimento de exclusão se equilibra com a integração a essa natureza que ao leitor parece ameaçadora, mas na qual Toinho se reconhece: A floresta infunde-lhe sensação de segurança e bem-estar. Sente-se nela como no seu ambiente natural, livre e feliz, protegido e amparado na sua solidão, a alma embevecida na fruição daquela beleza selvagem. A vida se lhe expande em torno em toda a pujança primitiva. Os traumas do amadurecimento coincidirão, portanto, com o progressivo mergulho em relações sociais nas quais prevalecem impulsos mais brutais e instintivos do que na selva à sua volta. Esses atavismos eclodem ao longo de toda a trama, irrompendo de modo particularmente intenso em dois momentos de delírio de Toinho - um pesadelo que precede o estupro de Paula (moça dos sonhos do protagonista) por um afilhado do coronel e uma alucinação febril em que a visão do embate mítico-religioso entre São Jorge e o dragão antecipa o modo como romperá com o mundo que o viu crescer. Os sutis jogos de imagens (em que os olhos verdes de Paula remetem às águas verdes do mar, ambos representando para Toinho uma saída para o inferno verde da floresta) e as alternâncias entre as cenas da vida rude dos seringueiros e os estados de consciência do protagonista mostram a habilidade narrativa de Miguel Jeronymo Ferrante em compor um retrato realista sem perder a sensibilidade para as nuances subjetivas. Seringal constitui, portanto, não apenas a descoberta desse universo dos seringueiros do Acre, mas também a redescoberta de um escritor cuja importância para a literatura regionalista brasileira pode agora ser devidamente dimensionada.