"Estes textos insistem. Teimam. Há um desejo em contar. Em alguns trajetos, espaços daquilo que poderia ser pura realidade torna-se intriga, ficção. Em O Cartão e outros contos, a literatura teima em se chamar formação e criação resiste para chamar-se etimologicamente: ficção. Desejosa de escrever, a autora utiliza-se desta teimosia para dialogar diretamente com cientistas que sempre tiveram como princípio a escritura de uma estória como sortilégio da possível realidade mística do mundo que os rodeiam. Nitidamente dois são os autores basilares: Anton Tchekhov e Machado de Assis. O desencadeamento de tensões e a busca incansável pelo elemento significativo irrompendo do ordinário são técnicas apreendidas executadas por Selena Carvalho neste breviário incansável de enredos e encontros parabólicos.Em uma das acepções, dicionarizada, de breviário: livro que se está sempre a ler. Desejo, eterno, de escritor que no caso destes relatos breves é deleite e encontro renovado. As tramas se entrecruzam, tomando o todo da obra, como que em choque, em desvios, que não almejam o reto caminhar, mas muito antes há uma nítida noção de consistência narrativa que não precisa se impor como verdade. O narrado é antes de tudo uma vivência ficcional, experiência de convencimento exercida pelo narrador. Como se consegue esta ‘vertigem de estória’? Trabalho aferrado sobre a seleção e crítica (são 2 anos e meio de produção narrativa) e sobretudo no domínio da técnica da peripécia. Selena Carvalho teima, insiste naquele caminhar desviante do relato do imprevisto. Pois, tornemos ao étimo grego‘mudança repentina de estados, precipitar-se de uma situação e outra’) e assim podemos reaver o espaço do leitor exigido pelo texto, decodificar transições súbitas em que o narrador e seus personagens buscam um desenlace que não é solução, mas degrau ou pico de onde se pode ver e ouvir o cotidiano se desmanchar em incidente: narrativa em sentido pleno.A percepção do corrente, neste O Cartão e outros contos, é sempre discursiva, impõe um termo que é o contar insistente das relações contemporâneas pelo viés significativo e tenso. Percepção, aliás, que busca devolver à vida seu grau apresentativo e acidental, deliberado e infreqüente. Estes textos lunares teimam, pois em um mundo de ‘realidades jornalísticas’ e ‘grandes soluções práticas de problemas modernos’, pedem uma pausa, mesmo breve, para se ler uma estória. E, sem dúvida, é isso já um choque."