Era uma vez um país "democrático", com eleições ao longo de várias décadas, com dois partidos - um social-democrata, o outro democrata-cristão - que se alternavam no governo, com sindicatos, imprensa privada e a maior renda per capita da América Latina. Acontece que essa "democracia" era uma ficção. Vivia da farra do boom petroleiro. Uma elite política e sindical corrupta, estreitamente aliada à grande mídia, promoveu o maior processo de corrupção que o continente já conheceu, apropriando-se das milionárias rendas do petróleo sem que o país tivesse se aproveitado em nada dessa riqueza para se industrializar, para construir sua infra-estrutura econômica, para dar melhores condições de vida para a massa miserável da sua população. Alternaram-se social-democratas e democratas-cristãos, dilapidando os bens públicos, privatizando pela via dos fatos a produção do petróleo, gerando um sistema bancário que faliu fraudulentamente e levando a que um dos seus presidentes social-democratas sofresse o mesmo destino de Fernando Collor, o impeachment, que o levou ainda à prisão. Em pouco tempo o castelo de cartas do sistema político ruiu e, com ele, os dois partidos tradicionais. Nas eleições presidenciais o candidato favorito era uma ex-Miss Universo, prefeita de um bairro chique de Caracas, financiada pelos banqueiros exilados em Miami depois da sua falência espetacular. Foi nesse momento que surgiu uma outra candidatura outsider: a do ex-oficial do exército Hugo Chávez. O governo de Chávez constituiu-se numa das tantas novidades da rebeldia latino-americana contra os padrões neoliberais, de que a Venezuela teve a felicidade de se poupar. Vítima da ditadura do monopólio da grande mídia privada, o governo de Chávez tornou-se a maior alavanca à organização autônoma do povo venezuelano, expressando publicamente uma polarização entre pobres e ricos - não promovida por Hugo Chávez, cujo mérito é permitir a expressão organizada dessa polarização, resultante do capitalismo petrolífero da Venezuela. O livro de Gilberto Maringoni, a melhor obra publicada até aqui sobre o tema, torna-se uma leitura indispensável para os que buscam - como os brasileiros - sair do círculo de ferro do neoliberalismo. Nele revela-se cruamente o que significam fenômenos como a "liberdade de imprensa", identificada com "imprensa privada"; a "sociedade civil", utilizada pela oposição oligopólica para propagar suas teses neoliberais; o golpe de Estado, aceito por governos que se pretendem democráticos, quando lhes convêm. A Venezuela passa sua história a limpo, da ficção à realidade. Por isso tornou-se um lugar privilegiado da redefinição obrigatória do que é um sistema democrático de governo. Quem estiver preocupado com os destinos da democracia, da justiça social e da soberania dos povos no continente, tem na experiência brilhantemente relatada por Maringoni o melhor material de leitura e discussão.