Glorinha Gadelha é conhecida nacionalmente por seu talento de melodista. Quem já ouviu sua obra musical só pode concordar com essa fama, que é justíssima. No entanto, o maestro Sivuca, que, convenhamos, tinha conhecimento de causa sobre o assunto, achava que o maior talento da mulher com quem viveu muitos anos era mais o literário do que o musical. Dizem que o amor é cego e aceitemos que Sivuca não enxergava lá muito bem. Mas, se você, minha amiga leitora, meu amigo leitor, tiver algum respeito pela experiência do escrevinhador destas linhas em matéria de literatura, saiba que o sanfoneiro de Itabaiana acertou em cheio e viu de perto e fundo. Foi ao âmago da questão: de fato, além de excepcional melodista e letrista de muito talento, a moça de Sousa é uma prosadora de primeira água, do primeiro time, do alto do pódio no mercado livreiro destes nossos tempos no Brasil. Quando Raimundo Gadelha me pediu para que eu escrevesse este prefácio, cheguei a pensar com meus botões: "co's diacho", como diria meu avô materno, Chico Ferreira, "lá vem mais um amigo para o qual eu terei de escrever alguma coisa carinhosa, mas sem muito compromisso, para não perder a amizade nem o pouco crédito que ainda me resta entre os colegas escritores". Deus é testemunha de quantos textos recebo para ler e opinar no meu dia a dia. Muitos talentos terminam passando sem que eu o perceba pela absoluta falta de tempo e de ânimo para enfrentar a enxúndia de ficção e poesia que me é oferecida por e-mail, Facebook, correio e pessoalmente em bares, restaurantes (até no banheiro), aeroportos, teatros, cinemas e cafés de shopping. A mediocridade generalizada - particularmente na cena cultural do Brasil de hoje - sempre me convenceu de que os raros talentos que eu deixar de reconhecer nunca compensarão o enfado que a leitura da média me causará. Amigo de Sivuca e de Glorinha desde tempos imemoriais, contudo, não poderia furtar-me a um pedido partido dela para escrever qualquer coisa sobre o tema que ela escolhesse. Só que ela, movida pelo pudor com que sempre preservou minha amizade pelo casal e dupla, nunca pediu nada nesse sentido. E foi o editor da Escrituras quem me perguntou se eu aceitaria escrever estas linhas. Não me poderia negar nem a ele nem a ela e aceitei com um pé atrás. Tenho mesmo, confesso, desde que tentei, e desisti, duas vezes, ler alguma ficção de Chico Buarque de Holanda, digamos, alguma má vontade (Deus do céu, seria preconceito?!) em relação a letristas que se pretendem poetas ou compositores que se creem escritores só porque são ídolos de massa e reconhecidos pela crítica musical. Não conhecia a obra literária anterior de minha amiga e não tinha motivos para acreditar que com ela seria diferente. Até que abordei o primeiro conto desta coletânea, a história de um maestro de banda do interior. Não resisto a uma confissão pessoal: nasci num pequeno burgo sertanejo, Uiraúna, muito perto do berço de Glorinha, Sousa, no vale do Rio do Peixe, e as festas de minha cidade sempre foram musicadas por retretas e marchas de uma banda de música. A banda de Jesus, Maria, José é uma das melhores da Paraíba e tornou meu rincão, escondido entre o Ceará e o Rio Grande do Norte, conhecido como terra de padres (seu fundador foi o padre José de França) e de músicos. A família Capitão (de Manuel, Expedito, César, Misael, Israel e Dedé) tocou e ensinou dobrados às novas gerações nas alvoradas e vesperais nas quais a criançada andava atrás dos músicos nas comemorações comunitárias. Então, achei que o encanto produzido pelo primeiro conto poderia estar turvando meu espírito crítico. E segui em frente. Faça como eu fiz: abra o livro com o pé atrás e vá avançando conto por conto, minha leitora, meu leitor. Você vai se deparar com o melhor do que a literatura lhe pode proporcionar. Foi assim que me senti ao ler Glorinha. Ela domina a palavra como poucas vezes na vida vi um escritor dominar. E o conto - o mais difícil dos gêneros literários - é sua, digamos, praia. O estilo literário de Glorinha vem de seu talento de melodista. Daí, o encanto que sua leitura produz. Cada conto é como se fosse uma canção e, como dizia meu saudosíssimo amigo Zé Rodrix, nada é mais significativo na estética do que a canção, por sua natureza capsular, seu poder de síntese. O conto, para este escriba, é um desafio, um enigma, a esfinge das esfinges. Nada tem que ver com a prosa jornalística, que não deve, não pode ter estilo literário, mas, sim, apenas e tão somente lógica. Nem com a poesia que nasce das profundezas do desconhecido do inconsciente. Ou com a novela que se realiza na narrativa longa e, em consequência, mais fácil de manejar. O conto exige o poder sintético da canção e a capacidade de resolver a narrativa com o mínimo de truques permitidos ao romancista. É como se fosse uma roleta russa pelo avesso: uma bala só para matar o urso. Isso não quer dizer que a habilidade - ou até mesmo a genialidade - de compor canções decifre o mistério do conto bem acabado. Paul McCartney, talvez o melhor melodista vivo no mundo, não é um contista de gênio. A prosa de Bob Dylan não está à altura de sua obra musical. Caetano Veloso se aventurou (e mal) pela prosa híbrida entre ficção e memória. Vinicius de Moraes virou letrista depois de ganhar fama como poeta. Não conheço exemplos que possa citar para justificar o talento inato da moça de Sousa pela narrativa curta e pela canção. Trata-se de algo que é singular e lhe é peculiar. Espero que a crítica literária, pelo menos o segmento que não está comprometido com os interesses do mercado editorial, celebre como excepcional este livro de contos, modesto no porte e imenso no talento criador de quem o escreveu. Mesmo que isso não ocorra, esta coletânea de narrativas curtas não passará incógnita. No futuro, se verá, sem dúvida, que a escolha do nome de sua autora pode ter sido uma feliz e oportuna profecia de seus pais. Se alguém no Brasil merece hoje a glória de uma fortuna crítica é a autora destas narrativas encantadoras, condensadas, prenhes de sabedoria e plenas de encantamento. Beijo-lhe as mãos de maestrina de letras por este belo, melódico e perfumado florilégio literário que elas semeiam em textos incomuns. E conto que dona Glória alcance a melhor sorte do mundo, que é o que seus leitores lhe almejam.