Um soldado brasileiro no Haiti mescla memórias do ríspido processo de formação imposto pelo Exército brasileiro com o relato de uma desumanidade sem precedentes, testemunhada pelo autor durante a missão de paz enviada pela ONU ao país caribenho. Ambos - o embrutecimento da vida militar e a violência política em nome da qual civis são metralhados - representam a face da mesma moeda, que alimenta os sonhos de ascensão social dos soldados e a indústria armamentista que promove golpes de Estado e intervenções "pacificadoras". O mundo dos quartéis e as guerras internacionais parecem distantes da vida de um país que varreu seus vinte anos de ditadura para baixo do tapete. O relato de Tailon Ruppenthal, porém, nos lembra como no desmoralizado Exército do Brasil ainda há espaço para o discurso golpista e a "arrogância teatral das relações de caserna", além de disposição para aderir à violência institucionalizada em troca de prestígio internacional. Ruppenthal fez parte da primeira tropa brasileira de soldados da Minustah (United Nations Stabilization Mission in Haiti), criada em 2004 para controlar a onda de violência que se espalhou pelo país após a queda de Jean-Bertrand Aristide (presidente que, eleito mas não reconhecido pela oposição, foi forçado a renunciar). Nesse depoimento organizado pelo escritor Ricardo Lísias, ele não arrisca hipóteses sobre as causas da renúncia ou dos interesses que estariam por trás de sua deposição. Apenas descreve a naturalização desse estado de exceção que tomou conta de um país em que eventos tão díspares como um boato sobre a volta de Aristide ou uma briga de esquina geram reações em cadeia de linchamentos e assassinatos. "O país é um necrotério a céu aberto", afirma ele nesse livro cujo impacto é realçado por fotografias feitas durante sua temporada no Haiti - imagens das condições de vida sub-humanas de uma população que toma banho em esgotos e vive em ruas com alimentos putrefatos e corpos em decomposição. Mais importante, porém, é o fato de Ruppenthal desconstruir a imagem edificante da missão brasileira e, de modo mais geral, da vida militar. Pois a sandice haitiana eleva ao paroxismo aquilo que já está embutido na realidade da caserna, onde as hierarquias reproduzem relações de desigualdade que estão para além dos muros do quartel. "O recruta é quase sempre muito pobre e está ali para limpar os banheiros do oficial, que vem da classe alta. Do lado de fora, é grande a chance de a mãe do recruta trabalhar limpando o banheiro da mãe do oficial", diz Ruppenthal. O resultado são problemas crônicos (depressão, alcoolismo) e o ressentimento de soldados que esperavam, ao entrar para o Exército, escapar de uma condição social que ali se perpetua - gerando uma raiva descontrolada e reavivando a ideologia golpista ("Tudo o que esse tipo de militar deseja é voltar para a sociedade e devolver uma opressão que, dizem, teriam sofrido desde a infância. Tenho certeza de que esse é o perfil de muitos dos torturadores da época da ditadura"). Filho de uma família de classe média do interior do Rio Grande do Sul, Ruppenthal escapa desse perfil (ao entrar no Batalhão de Infantaria Motorizada de São Leopoldo, não estava em busca de proteção econômica, mas tinha ilusões de galgar postos na carreira militar). Não escapou, porém, à experiência - compartilhada por todos os soldados da missão brasileira - de fazer papel de polícia (função para a qual os militares não recebem treinamento) e de figurante no reality show da política ­ como no episódio da visita da seleção brasileira, que jogou contra a seleção haitiana um amistoso assistido pelo presidente Lula ("O jogo não passava de mais uma mola na enorme engrenagem de propaganda que significava a missão de paz"). E não escapou, sobretudo, das seqüelas psicológicas deixadas pelas cenas de desespero de uma população de mutilados, de uma guerra em que é comum atear fogo ao corpo de pessoas ainda vivas: "Na última noite, com um amigo, tentamos contabilizar quantos cadáveres havíamos visto no meio da rua. Não conseguimos lembrar ao certo, é claro, mas deve ter sido bem mais que uma centena. É assim que um militar conta carneirinhos", conclui Ruppenthal. Como diz o jornalista Carlos Dorneles, no texto da orelha do livro, "Um soldado brasileiro no Haiti nos revela o que deveria ter sido um trabalho da imprensa, mas ela se calou. Tailon está falando por ela."