Na vida, e sobretudo na ficção, as coisas nem sempre são o que aparentam ser. É preciso atenção duplicada para ler na escrita íntima dos casais os signos que ensejam as verdades provisórias ou as falácias definitivas. Pois o leitor de Natureza morta, o primeiro romance de José Fontenele, deve abrir os olhos dos olhos diante dessa história protagonizada por Damião, recepcionista de um hotel, e sua esposa, Laura, alçada de súbito à condição de pintora promissora. A narrativa é cristalizada em três partes que, como fractais, consubstanciam primeiro a versão do marido, depois a da mulher e, por último, temos uma alternância dos narradores. A ótica de Damião captura a todos que o cercam como animais se movendo na esfera das relações humanas - inevitável não pensarmos no motivo de sua perspectiva fabular -, enquanto o testemunho de Laura se constrói, confessional, em sessões de psicoterapia, após ter dois filhos natimortos e uma tentativa de suicídio.