Se Deus, desde a conceção fundadora do existencialismo francês, está morto, então no mundo contemporâneo falar do outro, daquele a que muitos se recusam a nominar é falar também do que deixou de existir. Mas como julgar inexistente o que nos forma e nos conduz - a noção de bem, transfigurada em Deus, e a de mal encarnada no Diabo, seja lá qual for o seu Deus o seu Diabo - desde que o homem se fez humano? Ignorá-la seria ignorar a própria experiência humana e, por conseguinte, senão toda, ao menos parte considerável da literatura universal, egressa muitas vezes tanto de conceituações mitológicas perdidas no percurso das civilizações quanto de histórias orais surgidas de fatos, crendices ou da disposição para o engodo de um ancestral qualquer. "Contos do Diabo" é uma coletânea de textos escritos por alguns dos mais representativos escritores em língua portuguesa do século XIX (com exceção do obscuro autor portenho Carlos Maria Ocantos), cortada por entrechos narrativos que remontam exatamente à trama original de tecelagem de mitos que envolve o Diabo. Aqui encontramos páginas memoráveis de Eça de Queirós (que vai tendo suas feições orientalista e satanista melhor avaliadas), Machado de Assis e dos dândis Fialho de Almeida e João do Rio. Do satanismo romântico de Fradique Mendes (persona literária criada por Eça, Antero e Jaime Batalha Reis) às missas negras e o ocultismo barra-pesada a la Huysmans, o século XIX deixou sua disposição de vontade de preservar esse alter que é auto, em que pesem a apologia depauperante do racionalismo e do materialismo e a crença cega no poder de interpretação da ciência tanto para fenômenos naturais como para o intrincado território psíquico.