Se a entrevista é o lugar em que escritores e artistas se convertem em personagens, Entre aspas: diálogos contemporâneos pode ser descrito como um grande romance jornalístico. Suas personagens são ficcionistas, compositores, filósofos, diretores de cinema, atores. Seu cenário principal, a cidade de Paris, onde o jornalista gaúcho Fernando Eichenberg mora desde 1997 - e de onde vem escrevendo esses capítulos saborosos, protagonizados por personalidades como Wim Wenders, Julia Kristeva, Fanny Ardant, Antonio Tabucchi e Pierre Boulez. As entrevistas de Eichenberg não obedecem ao timing ou à pauta convencionais do jornalismo cultural. Ou seja, vão muito além do depoimento fugaz, concedido por ocasião de ganchos como o lançamento de um livro ou a estréia de um filme. Seus encontros são precedidos por um longo período de maturação, de leitura e estudo do conjunto da obra do entrevistado - que, por sua vez, nunca é uma figura efêmera da sociedade do espetáculo. Resultam daí longos depoimentos, que têm o peso da permanência, sempre precedidos de um perfil intelectual que vale, por si só, como uma aula de acuidade crítica e sensibilidade. Ao introduzir sua entrevista com Godard, por exemplo, Eichenberg antecipa as reações imprevisíveis do cineasta francês, dá pistas para compreender suas referências cifradas (especialmente os desafetos) e traça esse retrato de sua personagem: "Uma entrevista de Jean-Luc Godard é similar a um de seus filmes: fornece indícios de um pensamento em movimento. No roteiro improvisado, a imagem completa o quadro. Sentado em diagonal na cadeira postada diante da extensa mesa de sua sala no segundo andar da produtora Alain Sarde, em Paris, os cabelos revoltos, a barba esfarpada, ele perscruta o interlocutor com o olhar ampliado pelos espessos óculos, como uma câmera, antes de responder às perguntas com sua voz rouca e inconstante. Para ele, o cinema se nutre cada vez mais do romanesco e da humanidade." O livro reúne 27 entrevistas, três para cada ano que Eichenberg viveu em Paris - cidade de onde continua enviando suas colaborações para diferentes órgãos de imprensa brasileiros. Não há unidade de tom e forma entre elas, pois cada uma deve transpor para a página o estado de espírito do entrevistado - além, é claro, de se adaptar ao formato para o qual foi originalmente concebida. Na maior parte dos depoimentos, Eichenberg optou pelo ping-pong (a alternância entre pergunta e resposta); ainda assim, consegue com sutis intervenções captar, por exemplo, o andamento - ao mesmo tempo melancólico e nostálgico - com que Claude Lévi-Strauss relembra sua vinda ao Brasil, nos anos 1930, numa missão francesa de intelectuais que fundaram a USP e mudaram o panorama intelectual do país. Pergunta o repórter: "- O que o trabalho da missão francesa acrescentou ao Brasil? (Silêncio). - Eu penso, sobretudo, no que o Brasil acrescentou à missão francesa (risos)", responde o etnólogo. Com outros entrevistados, Eichenberg prefere adotar como formato o perfil entremeado de declarações, num vai-vem entre discurso direto e indireto livre que lhe permite dissecar as sutis mudanças de humor, o gesto, a expressão facial e o tom de voz que acompanham cada resposta. Como num bom romance, a variedade de tipos que emerge do livro é enorme e inclui desde Aimé Jacquet, técnico que levou a França a seu primeiro título mundial, em 1998, e atores altamente intelectualizados como Michel Piccoli e Charlotte Rampling, até diretores teatrais revolucionários (Patrice Chéreau, Peter Brook) e artesãos do cinema (Eric Rohmer, Emir Kusturica, Wim Wenders). Em todos eles, a marca da atualidade, do espírito crítico e da reflexão sobre a história recente, com vaticínios anteriores ao 11 de setembro feitos por pensadores como Paul Virilio ou Tzvetan Todorov e diagnósticos sobre as doenças do presente - como nas meditações de Jean Baudrillard sobre a irrealidade da guerra contra um "terrorismo fantasma a ser eliminado, dentro da estratégia da prevenção", uma guerra virtual, que "não começa verdadeiramente, mas também não terminará".