Já me aconteceu, e mais de uma vez, de olhar para um viaduto e lembrar do poema "Cumplicidade": ontem senti amor pelos viadutos não bem isso era mais complicado um compromisso firmado Já disse esse poema várias vezes, em ambientes os mais diversos, como exemplo de poesia de nosso tempo, elíptica, urbana, dramática, amorosa, usando da tradição alguns recursos como a rima e a suspensão da pontuação, tudo com um imenso à-vontade na sintaxe da língua. Já referi o poema como exemplo da possibilidade de negociar meus sentimentos com a dureza da cidade. É um poema que o João escreveu há tempos, mais de vinte anos, e desde que li não me saiu da cabeça. Eu olho para qualquer viaduto e, em vez de pensar naquela obra trivial da arquitetura urbana como véspera do caos, sinto em mim um desejo de gostar dele como se gosta da casa da infância, como algo que pertence ao repertório básico e irrenunciável dos objetos com que se constrói a identidade. É um poema que me fez mudar o jeito de ver o viaduto, quer dizer, a cidade. Ok, esse elogio pode ser mais um atestado de como eu não sabia ver a cidade do que uma garantia da extrema qualidade do poema do João. Pode ser, mas não é. "Cumplicidade" faz diferença. O poema volta agora, no apenas terceiro livro de poesias do João, neste livro teleférico, livro que nos faz sentar confortavelmente, mas em cadeira pendurada sobre o abismo, livro que nos carrega com delicadeza, mas densamente. O poema volta na companhia do que de melhor se pode esperar de um poeta comedido, discreto, parcimonioso e muito, muito bom. João Ângelo nos apresenta uma seqüência de poemas sempre breves, indo até o hai-kai, que maneja com total certeza e acerto. Sabe aquela idéia oriental do poema breve como iluminação súbita, com um leve aspecto narrativo saindo de dentro de uma descrição precisa? É assim: picolé no sol. de longe, muito longe advertências de mãe Ou então: manhã de vento na caixa de correio apenas uma folha seca O João é um dos caras que mais entende de cidade, talvez especialmente desta cidade que nos cabe na geografia do mundo, esta Porto Alegre ventosa, que ele celebrou. Cidade que ele pensa aqui, em poesia, ajudando-nos a entendê-la melhor. João olha para a gente cansada da hora do rush e diz assim: há um cansaço recíproco e conformado como se todos tivessem nadado durante horas em água densa Como também ajuda a entender a própria poesia, a segunda grande matéria deste livro. Poesia que funciona como um tema para a filosofia desenvolvida aqui, que se não me engano pode ser resumida assim: a arte, como a vida, é aqui e agora - "nem amanhã nem memória", ele diz numa das várias poéticas do conjunto.