Foi Saxo Grammaticus, clérigo, ministro do rei e fundador da cidade de Copenhague quem primeiro escreveu a história de Hamlet, no século XIII, a partir da figura de um legendário príncipe de um tempo em que nem mesmo a Dinamarca existia. Mas foi Shakespeare, gênio inigualável, quem lançou o príncipe aos espaços infinitos e o fez correr mundos, inspirando não apenas romancistas, poetas, pintores e dramaturgos, mas todos aqueles que vêm se perguntando sobre a condição humana. Alguns séculos depois de Shakespeare, foi publicada na revista parisiense La Vogue, em 1886, uma novela de Jules Laforgue intitulada Hamlet ou as conseqüências do amor filial, que lança mão tanto de elementos de Shakespeare quanto de Saxo Grammaticus. Se não corre mundos como a peça shakespeariana, ainda assim chega até nós, tingida de uma fina ironia e de um leve perfume noir produzidos talvez pela morte que seu jovem autor já trazia no corpo quando a escreveu, aos 26 anos. O livro que o leitor tem nas mãos, como seus antecessores, originou-se da força de um personagem que já atravessou oito séculos, conservando sempre a incrível habilidade de pertencer ao tempo presente o tempo dos homens. Apresentada como tese de doutoramento em Letras de Marici Passini, a presente reescritura de Hamlet possui na verdade dois heróis. E seu segundo protagonista não pertence ao gênero humano, embora deva a este a sua existência. É ele a própria literatura: a arte da escrita, da composição, da invenção, tão estranha e misteriosa, tão sujeita a elucubrações quanto os pensamentos do príncipe Hamlet. A literatura não é um conjunto de obras singulares, mas o sistema de relações entre elas. Imersos neste sistema, como no oceano que envolve Solaris e que dá corpo e movimento às lembranças daqueles que vivem em sua órbita, é que os livros escrevem a si mesmos, nascem e circulam no tempo, ora transparentes e silenciosos, ora espessos, vibrantes, ora ambas as coisas de uma só vez, já que cada leitor, também escritor, lhe dará a forma particular do seu espírito e do seu desejo. Ao seguir os passos de Hamlet, Marici Passini nos faz seguir também os passos da Literatura. Mergulhamos com o príncipe nesse mundo imenso, infinito, que embora tenha o tamanho do universo, não é formado por outra coisa senão por palavras, palavras e palavras.