Duas meninas numa cama. Estão nuas: ninguém duvidou disso desde que o quadro foi exposto. No entanto, não se vê muito delas. O erotismo não está ali escancarado. Antes, ele estimula a imaginação de quem olha. Há sono e sonolência, há o peso do calor: estamos no verão. Visconti acaricia os corpos, os lençóis, a cama, com pinceladas leves que despertam uma vida suave e íntima. Nada de notas vibrantes, nada de acidez, muito menos a palidez desmaiada de um Puvis de Chavannes. Antes, a vibração calorosa de tons cujo pólo central é a cor de mel. Os valores, quer dizer, as intensidades, o exato controle sobre superfície dos corpos, sobre as epidermes, são precisos em cada detalhe e nas suas relações entre si que formam um todo. Um sentimento da atmosfera graças ao qual a luz não se dispersa num espaço árido, construído por superfícies lisas e brilhantes, mas em que, por assim dizer, ela se infiltra. É o ar presente e sem peso que cria a secreta aliança entre tudo o que está figurado ali. O encanto provocado pela tela surpreende: brota da precisão e do misterioso, oscila entre a verdade convincente e a visão do sonho. Mas são duas meninas. Naqueles tempos, essas jovens de Visconti, que estão chegando à puberdade, eram vistas sob o álibi de uma inocência indiscutível. Está claro porém, que paira nessa soberba obra-prima, talvez o quadro mais belo de toda a pintura brasileira, o tom erótico que um Fragonard não renegaria. Muita tinta correu sobre a obra. Ela terminou recoberta por fantasias e invenções de todo tipo. Coube a Mirian Seraphim afastar as camadas que perturbavam seu conhecimento, para melhor compreende-la dentro de uma espantosa complexidade, inserindo-a na cultura do início do século XX, vinculando-a a representações eróticas que se elaboraram desde o século XVIII. A autora nos guia, com segurança e conhecimento, pelos meandros que vão do lesbianismo ao desejo adolescente. As associações que ela sugere desencadeiam belas intuições permitindo compreender muito do clima próprio ao imaginário da época. Tudo isso não seria possível sem a pesquisa de fundo, realizada com vigor e tenacidade, que elucida, de maneira excepcional, o início prodigioso da carreira de Visconti. O texto, que vai longe na anatomia dos desejos e na compreensão da pintura, provoca interesse imediato. O leitor é tomado pela seqüência de questões e pelo seu desvendamento como num excelente romance policial. Para o estudioso, reúne um tesouro de análises e informações novas, precisões e interpretações esclarecedoras.