Para quem curte o centro velho de São Paulo, Desacelerada mecânica cotidiana, do escritor e fotógrafo Arlindo Gonçalves, é um livro espetacular, com lindas imagens desaceleradas tal qual a narrativa. O romance se passa pelo centro e seus personagens são totalmente típicos. Porém, o que vemos não é o corre-corre, mas um cotidiano desacelerado em meio ao caos de pessoas indo e vindo. Arlindo retira dessa matéria-prima estórias belíssimas que comovem e com as quais nos solidarizamos. O sonho do travesti Vladimir que planeja ir a parada gay com seu companheiro. Ou o dono do boteco que fica debaixo do Minhocão, comovido pelo acidente fatal de um amigo ou de uma vítima de trânsito, humaniza o que para nós se banalizou - a vida. Para Valéria Rezende, nestes tempos, lê-se ou ouve-se com freqüência que a literatura não serve nem deve servir para nada, pura linguagem liberta de seu velho destino de referência a um real que ninguém mais sabe o que é, jogo de significantes sem significado, aos quais cabe ao leitor, se quiser, pespegar um sentido qualquer. Arlindo Gonçalves não enveredou por essa larga estrada. Como fotógrafo ou como escritor não assume a posição egocêntrica e auto-justificativa, não se fotografa a si mesmo no espelho, não escreve mais um livro sobre um jovem jornalista que quer ser escritor e debate-se com seu romance inacabado sobre um jovem pubicitário que quer ser escritor e debate-se com seu romance inacabado sobre um jovem jornalista que quer ser escritor e debate-se... - image en abîme, muito chique - tudo culpa da violência e da mediocridade à sua volta com a qual ele não tem nada a ver. Neste livro como nos dois anteriores que compõem uma trilogia, Arlindo Gonçalves faz o que os artistas podem fazer, se forem capazes: vêem o que não parece evidente e, através de sua obra, dirigem nosso olhar para que nós também o possamos ver e fazer nossas escolhas. Os personagens que Arlindo apanha nas ruas e retrata com palavras são mais do que desonrados, excluídos, fracassados. São portadores de sonhos, esperanças, fantasias, teimosias com as quais podemos nos identificar e reconhecer que, se debaixo das cinzas ainda há brasas, podemos escolher pisá-las para que se extingam, ignorá-las ou assoprá-las para que se reavivem.