Anna O. e outras novelas, de Ricardo Lísias, reúne novelas deste autor numa edição que fornece um retrospecto e um painel evolutivo de sua obra. Com Duas praças, romance publicado em 2005 por esta editora, Lísias classificou-se em terceiro lugar no Prêmio Portugal Telecom. Na presente reunião de novelas (duas delas, Capuz e Dos nervos, publicadas pela editora Hedra, de São Paulo, em 2001 e 2004, respectivamente) o autor prova a coerência de um estilo e de uma estética literária, dando aos leitores a oportunidade de conferir a nítida evolução de uma personalidade muito bem definida de escritor. São cinco estórias, de capítulos curtos, com os quais Lísias constrói narrativas nervosas, essenciais, sempre tocando em problemas da maior ressonância existencial e política, mas não à maneira do escritor classicamente engajado. Ao contrário: é mais na descida aos infernos individuais, aos gestos minúsculos e às misérias psicológicas da vida comum, da qual o fantástico é talvez uma faceta menos lírica que irônica, que Lísias faz as suas jornadas narrativas. Um humor negro, cruel, percorrerá sutilmente essas aventuras no interior de certas almas em situações que, aparentemente disparatadas, oferecerão, na verdade, sutis confluências. Capuz, que abre o livro, é de uma contundência e de uma capacidade de empatia com o leitor que se impõe de imediato, de maneira irresistivelmente convincente, e prova que o escritor sabe o que faz e faz o que sabe com perícia. É a história de um homem que foi seqüestrado. Por quem, não saberemos. Não teremos, tampouco, os célebres dados "antecedentes" que constroem o personagem realista clássico e que empresta às narrativas mais tradicionais um campo sólido de familiaridade que costuma tranqüilizar os leitores mais afeitos a uma prosa superficial. Não: Lísias quer é o incômodo, a intranqüilidade, o desconforto. O homem é levado para um espaço exíguo, que, numa experiência territorial básica, primária, terminal, terá que ocupar humanamente como puder, desesperando-se e procurando as saídas possíveis. Teremos que viver esse calvário, enfiar-nos em sua pele, em carne viva, e seremos esse homem que, encapuzado, não enxerga, recebe comida no escuro por uma porta que, só pelo tato, adivinhará que é de ferro. O breu que envolve por completo esse personagem será sentido pelo leitor - devido à prosa crua e sem concessões de Lísias - de um modo palpável e angustiante, tornando a experiência do leitor o que a experiência é para o personagem: inescapável. Talvez seja das mais angustiantes novelas já escritas na literatura brasileira. E a prosa objetiva com que Lísias constrói a situação e o personagem - na verdade, um homem que tende à complacência e à acomodação" faz pensar na frase com que Kakfa construiu a sua estética literária: "O que faz o monstruoso é a naturalidade com que é apresentado". Diário de viagem vai nos colocar frente a um homem que viaja para Portugal à procura do túmulo do pai e que encontra, na Holanda, indícios de um outro homem, cuja sombra distante se colará à sua. Duas vidas em paralelos nada óbvios, numa construção que se verá repetir no livro de Lísias: dois personagens, duas histórias, cujas semelhanças e disparidades não ficam claras senão para o leitor que mergulha com decisão na psicologia que lhe é apresentada e no pano de fundo histórico, social e político que o escritor manipula com uma destreza e um humor desafiadores. E com esse paralelismo, com esse entrecruzar de pontos de vista duplos, entraremos também em Corpo, que nos remeterá ao interior de uma psicose, de uma Maria que possivelmente está num manicômio e é visitada por um homem cuja neurose é patente na indecisão em relação a certo relógio. Em Anna O., um psiquiatra terá que cometer um ato vergonhoso, que o envolve numa questão política e social que interessa de perto aos que acompanham a história da América do Sul. E em Dos nervos, uma mulher sexualmente reprimida e sua mãe (pensa-se na tensa relação entre mãe e filha do filme A professora de piano, de Michael Haneke), terão suas pequenas vidas entrelaçadas à de um jogador de xadrez de uma Rússia que está perto de sua última grande mudança histórica. Essa união do estritamente pessoal com o mais amplo universal é uma das marcas da prosa de Lísias, cuja pungência é sentida em cada frase. Tensa, irônica, concisa, ela nasce convidando o leitor a uma leitura que jamais será indiferente.