Em seu primeiro livro de ficção, O passeador, a jornalista Luciana Hidalgo - duas vezes ganhadora do Jabuti, por Arthur Bispo do Rosario: O senhor do labirinto e Literatura da urgência: Lima Barreto no domínio da loucura, nas categorias reportagem e teoria literária, respectivamente - segue a linha dos autores que viram o Rio de Janeiro como um grande espaço para o passeio e a observação da sociedade, tendo como protagonista ninguém menos que o autor de Triste fim de Policarpo Quaresma. Inspirada por obras como A alma encantadora das ruas, de João do Rio, e Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, do próprio Lima Barreto, a autora conduz o leitor por um passeio pelo Rio de Janeiro do "bota abaixo", como ficou conhecida a reforma urbana empreendida pelo prefeito Pereira Passos no início do século XX, revisitando um período importante da história da cidade a partir do ponto de vista de um de seus maiores observadores, e por meio de um enredo ficcional costurado à perfeição. No livro, escrito com o apoio da Bolsa Funarte de Criação Literária, Afonso (primeiro nome de Lima Barreto) desfila seu senso crítico sobre a completa transformação da sua cidade, que atropela as moradias dos pobres para erguer uma "Paris das Américas", asséptica e metida a besta, aos moldes da reforma Haussmann na capital francesa. "Quanto mais percorre essa cidade em fendas, devassada em seus avessos, mais amaldiçoa a reforma urbana", escreve a autora sobre um desalentado Afonso a arrastar os pés pela terra seca de onde vai se erguer a Avenida Central, futura Rio Branco, que abre e fecha o livro. Na trama, que Luciana desenvolve em meio a uma minuciosa pesquisa sobre a época em que o Rio de Janeiro ganhava os contornos que seriam a sua marca no século XX, ela inclui um sebo na rua Gonçalves Dias, frequentado avidamente pelo tímido Afonso, mantido por Tiago, um português rabugento, e Sofia, a discreta funcionária apaixonada por livros e curiosa em relação ao comportamento de Afonso. Ela o segue pela cidade em metamorfose, é uma sombra, uma personagem que aos poucos se concretiza, passeando com ele na rua do Ouvidor, no Passeio Público, ou em meio às demolições. O passeador também mostra, com riqueza de detalhes, a transição da iluminação feita à base de lampião para a iluminação a gás, mais um elemento da modernidade atropelando os escombros de uma cidade que ia perdendo seus ares provincianos. O passeador Afonso percebe com tristeza essa mudança brusca e se sente deslocado, "desterrado em si mesmo". Luciana faz seu protagonista caminhar por ruas extintas, imagens que se perderam, personagens que se tornaram folclóricos, como o acendedor de lampião, conhecido como "profeta". Afonso é pequeno funcionário público, mulato num país que recentemente abolira a escravidão, mora no distante subúrbio e tem um pai que começa a sofrer da loucura. Acima de tudo e todos os problemas, no entanto, está a paixão pela literatura, que supera o preconceito, a discriminação, a falta de dinheiro e, com o tempo, a relação íntima com a bebida. Um "flâneur engolido pelas ruas", assim ele se sente. Luciana Hidalgo, que estudou seu protagonista profundamente, presta com esta ficção uma homenagem à literatura feita de forma sincera, sem preocupação com as pompas e homenagens que tanto aborreciam o jovem Afonso. O escritor é visto aqui como um "deus deslocado a inflacionar a vida com emoções falsas", como bem o disse Sofia num momento de reflexão sobre a sua relação de leitora com os autores preferidos, reflexos de amigos feitos e amores emprestados.