Nenhuma iniciativa pareceu-nos tão oportuna, no atual estágio civilizatório e aca-dêmico, quanto a presente homenagem a Alessandro Baratta: muitas vozes nela se reconhecerão. Indubitavelmente, pela significação da obra. Pela importância ímpar de seu contributo científico e militante para as Ciências Sociais e Humanas no Ocidente e, particularmente, para a história das Ciências Criminais, com seu protagonismo cosmopolita na construção da Criminologia Crítica e na revisão disciplinar da Dogmática Penal e da Política Criminal que, desde o interior daquela, está a se desenvolver, num processo com riquíssimas conseqüências epistemológicas, sociais e políticas. De modo especial, pela singularidade do homem. Ademais de sua notável e notória excelência intelectual e criadora, ele é um ser humano verdadeiro, simples, afetivo, solidário, ético e, dessa forma, profundamente comprometido com o outro, sejam pessoas ou povos, próximos ou anônimos. Em derradeiro, porque, em Alessandro Baratta encontramos uma radical coerência entre a teoria e a prática, entre o discurso e a vivência, entre a palavra viva e a palavra vivida. E a força dessa práxis não é outra senão a força da unidade homem-obra; é a força de uma totalidade em movimento, coerentemente, no espaço privado e público da vida, no cotidiano da casa e da rua, no mundo da vida e no mundo do sistema. Nessa esteira, pensamos que o grande e permanente objeto na obra de Alessandro Baratta é precisamente o homem. E a emancipação humana o projeto e processo utópico perseguido. Mas o objeto, aqui, deve ser entendido como referencial e sentido, pois, evitando a tríplice atitude de tomá-lo como coisa ( coisificando-o), abstração ( universalizando-o) ou dado (imutável), o homem é assumido em sua subjetividade, contextualização e devir. O homem é o ser humano de um tempo e lugar e tem história; é o homem concreto, material e existencialmente situado e ressituado na dinâmica das relações humanas e sociais. É assim que na obra de Baratta o próprio sentido do sujeito está a se redefinir, holisticamente, na trama da vida e dos reencontros das unidades separadas (em classe-gênero-raça...) pela violência sócioepistemicida da modernidade. A atitude de tomar o homem como objeto sem coisificá-lo deve-se ainda, na obra de Baratta, a uma atitude de dialetização responsável, antes que de ruptura asséptica, entre sujeito e objeto de conhecimento, a qual conduz ao compromisso do sujeito de conhecimento, particularmente do cientista social, como ator político engajado no processo de transformação social. Ele aparece não apenas como o sujeito que fala - numa relação de exterioridade face ao objeto - mas como sujeito que se inclui no lugar do (s) sujeito(s) de quem fala, sem pretender subtrair-lhes a voz. E não se trata de mera tolerância para com a diversidade do outro, encarado como um estrangeiro em relação a um eu ou um nós. Mas se trata de um respeito e de uma inclusão que conduz a assumir a ótica do outro antes que constrangê-lo à ótica ( privilegiada) do enunciador. Essa mesma atitude inclusiva, transplantada do plano epistemológico para o plano das relações sociais e políticas ( microcosmos da cidadania) operará, em sua obra, como base de um novo pacto social não excludente, como o foi o pacto da modernidade. Todavia, para além da ultrapassagem do mito da objetividade e da neutralidade científicas pelo reconhecimento do caráter interessado do conhecimento, do que aqui se trata é da ultrapassagem do interesse pelo compromisso solidário e, num sentido último, do compromisso pelo amor. A afetividade faz-se então um caminho metódico, uma forma de caminhar que produz a intersecção, de forma não convencional, entre o imperativo da razão e a sensibilidade da emoção e da paixão. Razão e paixão reunificadas. Nesse horizonte, a narrativa de Baratta apresenta uma elaboração específica de recepções, recusas e redefinições muito claras. Entre uma escuta muito atenta e crítica das advertências pós-modernas, cuja racionalidade não chancela, mas que parecem impulsioná-lo a perscrutar com redobrado e redefinido interesse a herança do pensamento moderno, e uma cuidadosa triagem deste, recepta, não na forma de um sincretismo teórico, mas de uma unidade interdisciplinar elaborada, o contributo de matrizes diversas, pertencentes tanto ao campo da Macro quanto da Microssociologia e outros campos do saber. Assim o é com a herança de Marx que- permitindo a ulterior maturação dos resultados do paradigma da reação social de base interacionista - opera como base da Criminologia Crítica; herança parcial e fecunda - o Historicismo, o Humanismo e a Dialética - inventariada de um espólio hoje largamente satanizado pela crítica vulgar que identifica a queda do muro de Berlim com a morte, sem heranças possíveis, do socialismo e da teorização marxiana e marxista em bloco. Eis o significado da herança, nas palavras de Baratta: Entretanto é possível definir a herança de Marx para o nosso tempo, renunciando ao materialismo dialético a favor do materialismo histórico no seu significado humanista; renunciar ao marxismo acadêmico para recuperar a grande lição humanista e emancipatória de Marx junto com seu método global de análise das relações sociais. Trata-se de fazer uma operação, com respeito à obra de Marx, do tipo da operação feita por autores como Walter Benjamin e Ernest Bloch. Estes autores tornaram o núcleo do historicismo e do humanismo marxiano independente da concepção mecânica do desenvolvimento necessário do capitalismo para uma sociedade melhor. (...) teremos então instrumentos para uma interpretação da herança de Marx que deixa o espaço necessário para as opções e para a responsabilidade do sujeito, sem renunciar à análise radical da realidade. Nesta interpretação, o projeto emancipatório baseia-se na análise objetiva da situação humana, porém ele permanece no horizonte dos desenvolvimentos possíveis, mas não necessários. Estamos diante de um humanismo emancipatório que opera como força centrípeda da teoria e da ação; como força dinamizadora da práxis. E parece ser a partir desse reconhecimento que o contributo científico e militante de nosso homenageado adquire sua significação plena; que se pode compreender o caráter dialogal com que vem desenvolvendo sua obra no eixo Europa-América, particularmente América Latina. Assim sendo, homenagear Alessandro Baratta na extensão merecida pelo legado de sua práxis é uma tarefa que pertence à história e que o processo histórico está, de fato, a realizar. Mas como a história se faz também, e necessariamente, de registros simbólicos e de rituais, de signos através dos quais desejamos comunicar a força das intenções e dos reconhecimentos, podemos dizer que os confins da escritura são, a um só tempo, muito finitos e muito transcendentais. Finitos porque incapazes de capturar - e expressar - a força do processo; transcendentais porque capazes de eternizar fragmentos e sentidos; memórias e memorações dele. É, pois, com a percepção dessa ambivalência - de seu limite e de seu desiderato - que esta obra vem a público, em dois volumes, reunindo vozes simbólicas de um tributo brasileiro e, em especial, da Universidade Federal de Santa Catarina. Pois, para além de tudo o que se disse, há que se registrar a incansável parceria e prazerosa e enriquecedora convivência que, ao longo de vários anos, Alessandro Baratta vem mantendo com as instituições e o público brasileiros (em especial nos Estados do Rio Grande do Sul, Paraná, Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Distrito Federal) e particularmente conosco, na Ilha de Santa Catarina, onde, entre inúmeras estadas, esteve como Professor visitante junto ao Curso de Pós-Graduação em Direito da UFSC, no ano de 1995, com o auxílio do CNPq. O primeiro volume reúne um conjunto de autores que, em nível nacional, mantêm vínculos acadêmicos e/ou afetivos com o homenageado, tendo alguns deles desenvolvido Doutorado ou Pós-Doutorado sob sua orientação total ou parcial. O segundo volume reúne um conjunto de autores egressos do Curso de Pós-Graduação da Universidade Federal de Santa Catarina que produziram, entre outros, e sob nossa orientação, dissertações ou teses sob o marco teórico da Criminologia Crítica, muitos deles tendo tido a oportunidade de contemporizar com Alessandro Baratta, em Florianópolis ou na Europa, e dele receber uma contribuição direta em suas pesquisas, cujos resultados, direta ou indiretamente, aqui se evidencia. O sistema penal, em sua complexa fenomenologia e funcionamento (Lei, reformas, Política(s) criminal (is), ideologia, Mídia e opinião pública, polícia, justiça, prisão...), é o objeto central de análise neste volume, evidenciando, a sua vez, o trânsito epistemológico do conceito de criminalidade para o conceito de criminalização, sob os pressupostos teóricos da Criminologia Crítica, inclusive em seu desenvolvimento rumo ao encontro da Criminologia Feminista. A tensão explicitada ao longo dos escritos, e no marco dos espaços do controle social e penal, não é outra senão a tensão emancipação/regulação; os temores e advertências não são outros que os relativos aos riscos totalitários da expansão tecnocrática e eficientista do controle penal: riscos para a democracia, a cidadania e os direitos; riscos para a dignidade humana. Os resgates vão sem dúvida no sentido da reafirmação das promessas constitucionais e do Estado democrático de Direito; os resgates buscam caminhos para concretizar, no processo, as promessas não cumpridas da modernidade. Aí então se visualiza, nessa vigorosa heterogeneidade, um grande fio condutor; um grande signo de unidade, que constitui, como se sabe, o próprio desiderato da Criminologia Crítica: a necessidade de ultrapassagem ou superação da cultura e da engenharia punitiva e da dor e das mortes que tem arrastado consigo; a necessidade da semeadura de novos caminhos, da fecundação de novos mecanismos de (re)construção das conflituosidades e da violência. Caminhos e mecanismos comprometidos com o homem (ser humano) a vida e a dignidade e não com a espiral do sistema. No centro do deslocamento, encontra-se, sem dúvida, a necessidade de minimização dos potenciais genocidas da criminalização x maximização dos potenciais vitais e democráticos da cidadania. Daí "Verso e reverso do controle penal : (des)aprisionando a sociedade da cultura punitiva".aí a dialética implicada hoje no saber e no poder penal. Se é certo que a clausura monológica do discurso penal foi rompida pelo processo da Criminologia Crítica, que restabeleceu o diálogo entre o social, o econômico, o político, o jurídico e o penal, permitindo-nos concluir que a construção social da criminalidade é o verso cujo reverso transformador é o espaço da construção social da cidadania, esta obra estará, através de sua homenagem, cumprindo a função social implicada nesse processo, de produção de sentido, não apenas pela e para a comunidade penal, mas para a comunidade transdisciplinar e aberta ao público. Em derradeiro, a leitura atenta da obra de Baratta vai deixando visível que, no fundo, a Criminologia é para ele uma grande escusa, a partir da qual consegue reinventar e redemocratizar um espaço para a práxis humanista. No fundo, a Criminologia é uma grande escusa, em cujo território parece aterrisar para melhor desterritorializá-la de seu domínio colonialista sobre a questão criminal. Trata-se de desfocar, descentrar o monopólio do discurso criminal do interior dos muros criminológicos, ao tempo em que reintroduzir o discurso social e político desde o exterior, recriando fronteiras móveis, na clausura unidisciplinar; instituindo sujeitos coletivos, na univocidade da enunciação; minando a razão tecnológica pela razão emancipatória. Daí a coerência entre os pontos de partida e de chegada. Uma teoria crítica da sociedade, do Estado e do Direito, de raiz histórica, filosófica e sociológica, confronta-se com uma teoria da criminalidade e do controle sóciopenal para, rediscutindo-a, reunificar o que foi, pela violência epistemicida da modernidade, artificialmente separado no próprio conceito de ser humano. O valor heurístico da Criminologia Crítica é, dessa forma, restitutivo. É o percurso de um longo caminho de regresso - embora, paradoxalmente, sem volta - à violência constitutiva de um pacto de exclusão. É o caminho do resgate das unidades humanistas perdidas e da busca do sentido das identidades a resgatar. O fio condutor é a problemática da violência e dos direitos humanos e o próprio sentido do humanismo, enquanto unidade polar emancipatória. A obra de Alessandro Baratta pode ser lida, dessa forma, como uma grandiosa e democrática narrativa sobre a não-violência, como um resgate radical ( = de raiz) da condição e da dignidade humanas; resgate que passa pelo enfrentamento de todas as formas de violência, sejam as decorrentes de estruturas ( desigualdade de classe e exclusão social, desigualdade de gênero), culturas ( discriminação racial, etária), instituições (violência do sistema penal), indivíduos ( violência individual) e quaisquer outras formas violentas de exercício de poder (local,nacional, internacional). Resgate que passa, também, pelo reencontro da Ciência com a sabedoria popular, pelo princípio da comunidade, pelos laços da solidaridade e da transversalidade comunitária, no espaço de uma comunicação livre do poder. Como não poderia deixar de ser, ficam aqui registrados os nossos agradecimentos à pronta receptividade que esta iniciativa obteve na comunidade acadêmica e à contribuição de cada um dos colegas que aqui se faz presente, num elenco que certamente não exaure, mas simboliza, de maneira expressiva, os laços do nosso homenageado e o próprio pensamento criminal brasileiro que Baratta, com as marcas acima referidas, historicamente co-constitui. Ficam enfim registrados os nossos agradecimentos à Fundação José Arthur Boiteux, do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Santa Catarina, na pessoa de seu Presidente, Professor Orides Mezzaroba e de seus funcionários e colaboradores, especialmente na pessoa de Mariane Bento e Luiz Carlos Cancellier Olivo, por possibilitar (em), com singular motivação e empenho, a concretização desta homenagem.