Escrevo agora pois acabei de acordar e ainda não parei de me sentir. O que me aconteceu ontem foi aconchego. Foi a garantia pessoal que, sobretudo, ainda há vida. Vida porosa, mas que festeja a própria existência. Como narrar aquilo que se sente? É missão difícil. Já vi a dor e o sorriso no rosto do outro e ainda assim não me comovi. Talvez se eu escolhesse outro meio de arte de conciliar o inconciliável, mas não é sensato. A perfeição técnica é plástica Na escrita meus erros se materializam em realidade. Insensatez pode parecer, da minha arte. Não sei se é arte, também. Uma coisa é justa: eu contarei sem perdão. E essa ausência de perdão não prediz uma impessoalidade. Pelo contrário. Condiz com uma dívida antiga, a mais antiga de todas, a de ser plenamente sincero. Com o passar dos anos cansei de peneirar aquilo que me ensinaram com sendo parte de um contrato que não aceitei fazer parte. Generosidade poderá ser chamada essa minha atitude. Generosidade de poeta que sofre para o mundano sentir-se estufado de ar e aceite com resignação o seu destino. Nesse exato instante, eu percebo a necessidade de me desvestir e poder ser apenas amor. Para escrever o que me ocorreu terei que ser universalmente indulgente, e passar dos limites do perdão. Escreverei porque em mim estreitou-se uma cicatriz de sangue, coisa estranha. E quando terminar de contar, enfim poderei ser órfão de mim.